31 outubro 2006

As coisas inúteis



Numa mesa de bar, comíamos ostras. Cruas, frescas, com limão e azeite. Sei que muita gente torce a cara me vendo sugar uma ostra diretamente da sua casca, arrematando com um gole generoso de cerveja gelada. Desculpe-me chocá-la, minha senhora, mas comíamos ostras. Terminada a farra, peguei a maior e mais bonita das cascas de ostras e embrulhei num guardanapo para levar pra casa. Pra quê?, perguntou um amigo. Para lembrar que estivemos aqui, neste domingo de sol. Lembrar que conversamos fraternalmente, gozamos a rara companhia do outro e que comemos ostras.
Para cada lugar que olhe em minha casa vou encontrar uma coisa assim, com a utilidade única de me lembrar um momento bom, vivido com pessoas de quem gosto. Tem um fruto de sapucaia, tem uma pelota de pinheiro, tem uma lasca de pedra do Ingá, tem embalagens vazias de charutos, um olho de boi e uma escama enorme de um peixe chamado piramutanga. E tem dois vidros de compota cheios de rolhas de vinhos que tomei em momentos de celebração.
E vejam que não estou falando do conteúdo de minhas gavetas, dos meus armários, nem das centenas de pedaços de papel enfurnados nos lugares mais improváveis. Abro um livro e lá está a entrada de uma peça de teatro maravilhosa vista há tantos anos. Vou procurar um papel e dou de cara com uma passagem de trem entre cidades vistas apenas uma vez. Levanto os olhos em busca de uma idéia e lá vai a imaginação puxada por uma moeda cunhada no ano do meu nascimento.
Não desdenho dos objetos e das máquinas que me servem no dia-a-dia. Facilitam minha vida, economizam meu tempo, me dão conforto e prazer. Pelo menos enquanto não me negam seus serviços, transformando-se então em objetos de tortura. Mas pelas coisas inúteis que me cercam tenho um carinho calmo e grato. As coisas inúteis me alimentam e me dão sentido.

28 outubro 2006

Iolanda?


Noite de autógrafo é um sofrimento. O autor, qualquer autor, sabe que fatalmente esquecerá o nome de alguém. E será sempre alguém bem conhecido, às vezes até um parente próximo. Com André não podia ser diferente. Era o seu primeiro romance. Sucesso de crítica e, coisa rara, sucesso de público. Todos os seus amigos estavam ali. Boa parte de seus parentes, muitos vindos de longe, fazia a fila de autógrafos dar voltas pelas gôndolas da livraria. E como não podia deixar de acontecer, as namoradas de André também estavam lá.
Era o que André mais temia. Esquecer o nome de uma de suas namoradas. Podia não lembrar o nome do seu melhor amigo, titubear com o nome do pai, mas nunca se perdoaria esquecer o nome de uma namorada. Para evitar qualquer vexame, tinha sido enfático com a moça do caixa. Nenhum livro podia sair dali sem uma etiqueta gomada com o nome do comprador escrito em letra de forma. Que ninguém se metesse a engraçado. Devolvesse o dinheiro, mas não deixasse ninguém sair dali sem o nome na etiqueta.
A fila andava sem atropelos. Cuidado para não repetir dedicatória de conhecidos comuns, beijinhos, apertos de mão, que bom você por aqui. De repente, André fica inquieto. Dali a dez corpos, um rosto conhecido sorria para ele. Mais do que conhecido, o rosto lhe era íntimo. Aquele sorriso lhe trazia um misto de saudade e esperança. Saudade de algo que não se lembrava muito bem, esperança de que se lembrasse do nome da dona do rosto e do corpo que já avançavam para a sétima posição da fila. André começou a suar. Sua inquietação foi se transformando em angústia à medida que a mulher sem nome se aproximava da mesa. Seu olhar era de confiança e intimidade. Entrava fundo pelos olhos de André que já não sabia o que escrever nos livros que passavam em suas mãos. Um nome, Senhor, dizei-me um único nome e serei salvo.
Mas Deus tem mais o que fazer do que ter pena de escritores. Não são eles seus maiores concorrentes? Criam mundos, inventam seres, determinam o bem e o mal de suas criaturas. Nunca socorreu nenhum deles em suas crises de criação. Muito pelo contrário, divertia-se com as agruras desses demiurgos de meia-tigela que perdiam o prumo de suas invenções. Vire-se meu caro André. Estão me chamando lá pras bandas de Andrômeda. Dito isto, Deus colocou a mulher, seu olhar e seu sorriso frente a frente com André e retirou-se da livraria.
Vendo o caminho livre do seu principal adversário, um certo ser caviloso soprou no ouvido esquerdo de André: vai dar parte de fraco, meu rapaz? Confie no seu taco. Mostre que nem precisa olhar o papelzinho. Assente a caneta na folha de rosto e escreva o primeiro nome que lhe vier à cabeça. Confie em mim. Vai ser o nome dela. Desesperado, André obedeceu. Encarou o olhar, respondeu ao sorriso e atacou: Para Iolanda...
Não pôde ir mais adiante. Sem abandonar o sorriso nem desviar o olhar, a mulher disse: meu nome é Sandra, André. Iolanda é o mesmo nome que você falou depois que trocamos o primeiro beijo. Você jurou pela alma da sua mãe que não sabia quem era Iolanda. E jurou com tanta força que acabei acreditando. Adeus, André. Lembranças a Iolanda. Sandra falou isto com calma e se afastou da mesa, deixando André com o livro abanando na mão esquerda.
Por um momento, André esqueceu-se da fila. Queria ir atrás de Sandra, beijar novamente sua boca e mais uma vez jurar, pela alma de sua mãe, que não conhecia nenhuma Iolanda.

25 outubro 2006

O peixe e meu pai




O mergulhador voltou à tona com um peixe na ponta do arpão. O peixe ainda estava vivo e se mexia no fundo do barco. Era verde, brilhante, um Bico de Papagaio, maior que a palma de minha mão. E a minha mão espalmada pousou sobre o peixe para que ele morresse quieto. Estava ferido de morte. Eu o ajudava a morrer. Quem conhece esse peixe, sabe. O Bico de Papagaio é verde, mas vai ficando azul enquanto morre. Então ele foi ficando azul, ali debaixo de minha mão. Parecia que eu fazia uma mágica. Uma mágica macabra, minha mão tendo o poder de mudar a cor do peixe que morria. E ele ficou sob a palma da minha mão, até se tornar, lentamente, todo azul. O contrário de um milagre.
O quarto do hospital era um oceano. Nele navegava a morte com meu pai no bojo. Eu estava em pé, de frente para o leito onde meu pai morria. Morria lentamente e eu não o tocava. Uma palma de mão maior que a minha comandava aquele tempo lento, sem agonia. De ofegante, a respiração ficou calma. Os olhos antes brilhantes se refugiavam agora numa névoa que marcava o limite de dois mundos. Mais uma vez, eu era a testemunha solitária da transformação. Mais uma vez a mágica macabra se operava em minha frente. Outro avesso de milagre acontecia. Mais um peixe mudava de cor.
De Memória curta, 1996.

22 outubro 2006

De lua


Ela era assim, de lua. Estava de um jeito e, de repente, ficava de outro. Já namoravam há quase um ano e Mauro ainda não se acostumara às mudanças de fase de Clarice. Nunca a encontrava de cara amarrada ou alheia. Seus estados sempre se situavam num ponto de uma gama bastante variada entre o vivaz e o melancólico. Às vezes, achava bom não saber de que modo ia encontrá-la. Gostava da surpresa, pois mesmo quando estava triste, Clarice era bonita e boa de estar junto. Mas não gostava quando ela mudava de repente.
Por exemplo, num bar, ela sorrindo, alisando a cara dele. De repente, se levanta para ir ao banheiro e volta de lá toda pionga, como se o mundo fosse acabar. E não adianta perguntar por que meu bem tá triste que ela não responde. Vai afundando o queixo, arriando os ombros, fechando as cortinas dos cabelos e fica assim não se sabe quanto tempo. É preciso paciência, meu Deus. Muita paciência.
Já ia alta aquela noite, parecendo que ia acabar sem surpresas. Clarice falava, escutava, ria um pouco, bebericava a caipirinha, falava, escutava, ria. Feliz, Mauro fechou os olhos e elevou o rosto aos céus, prevendo as maravilhas que a noite prometia.
O silêncio de Clarice fez Mauro voltar da estratosfera. Ele abriu os olhos e viu o rosto de Clarice como nunca tinha visto. Era uma expressão neutra que fazia toda a face parecer plana, sem os acidentes naturais dos olhos, maçãs, nariz e boca. Uma neutralidade que começou a sofrer uma tênue mudança no lado esquerdo que foi se entristecendo, tomando um ar sombrio que foi gradativamente ocupando toda a face esquerda e lentamente se alastrando pela face direita, até ocupar o rosto todo.

Por um instante Mauro contemplou o rosto amado totalmente tomado por uma sombra que não era bem uma ausência de luz, era um tom que se fazia impor como um fantasma. Mauro gelou e só voltou a sentir o corpo quando a ponta esquerda do rosto de Clarice deu mostras de retomar o ar claro que foi novamente ocupando, devagar, a extensão da face, e lentamente se alastrando pela face oposta. Mais alguns segundos e o rosto de Clarice estava ali, completo, sorrindo em sua frente.
Que foi, nunca me viu?, perguntou ela ante o espanto do namorado. Não, nunca vi não, respondeu Mauro. Eu sabia que você era de lua. O que nunca tinha visto era você em eclipse total.

18 outubro 2006

Pontos de encontro


Para Rosa Amanda

Nós trazemos no bolso da alma um caderno com alguns endereços e os nomes de certas pessoas. Vagabundamos pelo mundo, no mais das vezes sem ver sentido neste cansaço que é estar vivo, até que passamos por algum dos endereços do caderno. Algumas vezes, o reconhecimento é imediato. Somos tomados por uma alegria, um êxtase de reencontro, uma certeza de estar voltando. Outras vezes o sentimento se dá num lugar do nosso cotidiano. Passamos pela mesma esquina todo dia, vemos as mesmas coisas, cruzamos com as mesmas pessoas. Mas tem um dia em que se dá a mágica e aquele lugar fica diferente, causando uma experiência que dificilmente se repetirá.
Mas não é só alegria e êxtase que nos esperam nesses lugares. Muitas vezes o que sentimos é uma sensação de opressão, de tristeza, de medo. Temos vontade de sair dali, mas alguma coisa nos prende no chão. precisamos viver aquilo. Estamos no mundo para isso. Da mesma forma que os lugares, existem pessoas que nos causam medo, raiva, tristeza, apreensão. Mas elas estavam escritas no caderno. Também precisamos encontrá-las, pois são portadoras de uma parte do sentido de nossas vidas.
Tem outros dias em que não somos nós que passamos. Antes, o mundo passa por nós. Viramos lugar, algumas vezes deserto, pois há dias em que nem nós mesmos estamos ali, em nós. Esses são os dias preferidos pelas pessoas do nosso caderno nos fazer visitas. Elas nos pegam distraídos, em vestes caseiras, entram sem pedir licença e não nos importamos. São velhos amigos que vemos pela primeira vez.
A experiência mais rica, entretanto, é quando, de repente, encontramos o endereço de uma certa pessoa do caderno. Aí a mágica transforma-se em milagre. Uma calçada estreita vira um parque relvado, um calor de meio-dia vira brisa da manhã. O boteco mais sórdido se transforma em catedral.
Preste atenção em alguns lugares que as pessoas escolhem para beber. Numa esquina sem graça, de frente pro sol, é comum encontrar dois amigos equilibrados em simples tamboretes, bebendo uma cerveja quase quente, mas encerrados num círculo amoroso que os faz flutuar acima da banalidade do cenário. E veja que não estou falando de amantes apaixonados, essas vítimas de morte do acaso. Falo de pessoas comuns, que estão ali pela primeira vez, talvez pela única vez. Mas aquele era um dos endereços do caderno onde estava anotado que elas iriam se encontrar. E estão felizes com o reencontro.
Nunca conseguiremos prever em que lugar e com quais pessoas se darão nossos encontros. Eles são poucos em cada vida e é bom que estejamos disponíveis para aceitá-los a qualquer momento. Pois esses lugares e essas pessoas têm por função nos preparar para um encontro mais dramático. Aquele que se dá num lugar escondido dentro de nós mesmos, onde só uma pessoa estará presente. E nesse lugar, cada um estará só. E apenas de si mesmo dependerá a alegria ou a tristeza desse encontro.

15 outubro 2006

O silêncio

Recebi este texto de presente na última reunião do Clube do conto. Divido com vocês.

Para Ronaldo Monte e seu poema "O Silêncio".

Sempre vi no silêncio uma poesia maior, da qual se extrai todo o "não dito", todo o esquecido. Admiro-o mais do que qualquer outro som, mais do que qualquer outro ritmo. O silêncio é pulsação. Às vezes, torna-se tão forte quanto o som de mil tambores ruflando uníssonos.
Certa vez li um poema que dizia:

O silêncio
é o solo da palavra.
Quanto mais denso,
mais forte o verbo
que dele brota.

Eu concordo com o poeta. No amor, o silêncio antecede o beijo; na vida, antecede o choro; para a alma, o silêncio é repouso, instante de calma e reflexão.
Busquei pelo silêncio escapar de certas bifurcações que a vida impõe. Mas ele não foi feito para isso. Foi feito, sim, para que haja tempo de respirar fundo e mergulhar de peito aberto.
"O silêncio é o solo", o verbo sou eu.

Alexandre Santos

(Foto de José Jordán)

Farfalhar



Por um momento, Demerval deixou-se iludir pensando que ouvia um farfalhar de saias. Apurou o ouvido e ficou sabendo que uma carroça deixava arrastar uns galhos de árvore pelo calçamento. Riu da própria tolice. Não mais existe farfalhar de saias.
A última vez que ouviu um farfalhar, estava meio de porre. Era uma noite de sábado. Ele saiu do trabalho para o bar, como todo sábado. Chegou em casa no fim da tarde e caiu na cama. Por isso ainda estava sonolento quando ouviu todo mundo sair apressado, sua mãe resmungando que nem no dia da formatura da irmã ele deixava a bebedeira.
A cabeça ainda não concordava com a necessidade do corpo se levantar. Decidiu ficar mais um pouco na cama. Por isso não sabe até hoje se o que ouviu foi um barulho real ou uma espécie branda de delirium tremens. Sabe apenas que foi um farfalhar. Vinha vindo pelo corredor, meio apressado.
Meu Deus, eles foram embora e me esqueceram no banheiro. Falei que ia só trocar a cor do batom. Era Belmira, a amiga da irmã que tinha vindo do interior para a festa de formatura. Belmira se assustou quando viu Demerval sentado na cama, a cabeça entre as mãos. Mais assustado ficou Demerval vendo Belmira naquele vestido de festa, que não sabe descrever até hoje, mas se lembra muito bem que farfalhava.
Demerval acompanha de olhos fechados o farfalhar da carroça desaparecer de seus ouvidos. E ainda de olhos fechados ouviu se aproximar o barulho áspero das pernas de uma calça jeans raspando uma na outra. Não mais existe farfalhar de saias, conformou-se Demerval. E foi ver o que Belmira tinha feito para o jantar.

11 outubro 2006

Fogo às vestes


Ateou fogo às vestes. Primeiro, encharcou o vestido com o que restou da garrafa de rum, esperou que se empapassem as roupas de baixo e tocou fogo. Pronto. Nunca mais aquela mulher vestiria aquelas roupas. Aquelas roupas que ele mesmo tinha dado a ela no dia de ontem. Dia de aniversário de casamento deles dois. Ele pediu, ela foi lá dentro e vestiu. Aí ele quis que ela tirasse o vestido. Queria vê-la somente com as peças íntimas. Fique só com as peças íntimas, pedia. E ela não, que agora não, que ele esperasse, que primeiro tomasse o rum com coca cola que ela tinha preparado com tanto gosto. Ele bebeu quase de um gole e pediu de novo: só as peças íntimas, pelo amor de Deus, só as peças íntimas.
Coisa estranha, essa de peças íntimas. Onde será que ele ouviu isso. Pra mim é só uma calcinha e um sutiã. Peça íntima parece coisa feia. Coisa que padre acha pecado ou a mãe proíbe de usar. Sei lá o que se passa na cabeça desse homem. Vai meu bem. Toma outra dose de rum pra dar mais um clima. Tiro já. Tiro o vestido já-já.
Uma dose, outra e mais outra. As peças íntimas, balbuciou. Só as pe...ças ín...ti...mas. O homem afundou o queixo no peito e começou a roncar.
Alta manhã. O sol na cara do homem. Cadê a mulher? Cadê o vestido? E as peças íntimas, cadê as peças íntimas? Corre para o quarto, ninguém. Estendido em cima da cama, o vestido. Ao lado do vestido, uma calcinha e um sutiã. No bojo esquerdo do sutiã, um bilhete. Fique com seu vestido, com sua calcinha e seu sutiã que eu não sou mulher de aparecer de peças íntimas para homem nenhum. Adeus.
Ele encharcou o vestido com o que restou da garrafa de rum, esperou que se empapassem as roupas de baixo e tocou fogo. E ficou ali, alheio ao mundo, olhando a fumaça no ar se perder.

09 outubro 2006

Tripas douradas


A empresa britânica de alimentos F. Duers & Sons acaba de dar sua contribuição ao esforço de erradicação da fome no mundo. Em comemoração aos seus 125 anos, lançou uma marmelada que custa em torno de R$ 4,6 mil o pote. O preço um pouco salgado se justifica. O sublime acepipe leva folhas de ouro de 24 quilates em sua sofisticada composição. Isto, além de laranjas de Sevilha, champanhe francesa e um uísque que custa perto de R$ 133 mil a garrafa.
Estou vendendo a notícia pelo preço que comprei no portal Invertia, que por sua vez cita o The Daily Telegraph. Os menos afortunados, nos informa o jornal, poderão se contentar com uma modesta torrada coberta com a marmelada pela bagatela de 318 Reais.
A partir desta notícia, posso fazer duas reflexões. A primeira, mais óbvia, é sobre a perversão do modelo de distribuição de renda mundial, que mata de fome milhões de pessoas enquanto uma ínfima minoria ornamenta de ouro suas tripas. Mas isso não é nenhuma novidade. Os mais ricos sempre comeram ouro enquanto os mais pobres comem sabemos muito bem o quê. Isto em qualquer parte do mundo. Não faz muito tempo, li em algum lugar que o restaurante Fazano, de São Paulo, incluía ouro em pó em uma de suas receitas.
A segunda reflexão é um pouco mais trabalhosa. É sobre o espaço que os jornais, as revistas, as rádios, as TVs e os portais eletrônicos dedicam a este tipo de notícia. Em tempos idos, essas curiosidades, os faits divers, só apareciam quando as redações ficavam à mingua de notícias importantes. Agora, essas desimportâncias ocupam o espaço principal dos veículos, numa rede de superficialidade que tenta nos impedir de compreender o mundo em sua complexidade. E enquanto nos divertem, os eternos comensais continuam alegremente a dourar suas tripas.

05 outubro 2006

A oficina no porão


Sérgio Castro Pinto

Desde há muito existe uma espécie de discriminação com o Regionalismo. E eu não tenho dúvidas: é mais uma estratégia de parte da crítica preconceituosa do sudeste para desqualificar um movimento que foi quem melhor respondeu aos anseios de se responder ao Brasil a partir do Brasil. Quem, depois de 1930, superou, em termos de qualidade, a ficção brasileira de 1930? Guimarães Rosa? Mas, o próprio Rosa se abeberou, e muito, do regionalismo.
No entanto, para muitos, o Regionalismo acabou. Acabou coisa nenhuma! Nenhum assunto se esgota, a não ser que não se tenha engenho e arte para se inovar, através do estilo, avesso a clichês, jargões e chavões.. E chego ao que eu quero: Ronaldo Monte. É regionalista? É. Mas de um regionalismo da alma que, ao fim e ao cabo, termina em se transformar universal.
Existe uma história de Jung segundo a qual o homem tem medo do porão. E realmente tem, pois, afinal de contas, o porão é subterrâneo, é a ausência do sol, é um mundo impregnado de sombras, de objetos imprestáveis, heteróclitos, desencontrados, faltos de tudo e de todos.
Daí, ainda segundo Jung, o homem preferir o sótão em função do seu medo, pois o sótão é o consciente, o mundo claro, solar, onde tudo é bem visível, previsível e definido.
E tanto é assim que o próprio Jung arremata: "A consciência se comporta então como um homem que, ouvindo um barulho suspeito no porão, se precipita para o sótão para constatar que aí não há ladrões e que, por conseqüência, o barulho era pura imaginação. Na realidade esse homem prudente não ousou aventurar-se ao porão".
Em outras palavras, no sótão - reduto do consciente - o homem não só racionaliza os seus medos como cria mecanismos de defesa para melhor combater os seus fantasmas, fobias, neuroses e angústias, ao passo que no porão - reduto do inconsciente - a "racionalização é menos rápida e menos clara".
Ronaldo Monte montou a sua oficina de escrever no porão. E, como bom e ousado psicanalista que é, escreveu a partir daí o excelente "Memória do fogo" (Editora Objetiva Ltda, Rio de Janeiro, 2006), cujos personagens, "Precocemente fracassados, perdidos em algum ponto do Nordeste Brasileiro - conforme bem o diz Rosa Amanda Strausz -, perderam-se também do fio que conduz à vida. Em volta do fogo, partilham apenas da cachaça, água que queima".
Os estranhíssimos viventes de Ronaldo são sombras que só ardem e "brilham" ao pé das fogueiras acesas. E embora de carne e osso, parecem fantasmas saídos de um livro-porão: este "Memória do fogo", um dos grandes lançamentos do ano de 2006.

Jornal O Norte, 5 de outubro de 2006.

04 outubro 2006

A outra de mim


Tenho muito medo da mulher. De seus abismos, do seu silêncio. E nem era pra ter. Fui criado por minha mãe e duas tias, com duas irmãs de lambuja. Devia, pois, desde o berço, estar acostumado ao modo de ser feminino. Com suas sombras, com seus segredos. Devia estar, mas não estou. E quanto mais vivo, mais me assombro com seus mistérios, com seus bruxedos.
Tenho mulher e duas filhas, várias sobrinhas, muitas amigas. Minha casa é impregnada pela alma feminina. Passei décadas da minha vida ensinando a classes formadas por grande maioria feminina. Oitenta por cento de minha clientela também é formada por mulheres. Já era tempo, vocês hão de pensar, de não mais me espantar com o feminino. Mas isso, no meu fraco entender, é impossível.
Não depende da idade nem de qualquer atributo físico. A mulher, toda mulher, traz consigo um quinhão de estranheza que resiste a qualquer tentativa de tradução. Inclusive por elas mesmas. É esta face obscura, que nos olha do outro lado da fronteira de um país estrangeiro, que nos lança o desafio permanente da decifração. Com a decorrente ameaça de devoramento, é claro.
Desde menino guardo a imagem dessas alegres esfinges, em cochichos, rabos de olhos, meneios de cabeça, finalizados pela risada cabulosa que me tinha por alvo. Pobres de nós, os meninos, indefesos, encabulados, batendo em retirada para longe daquele exercício incipiente do maldoso mistério a que ficamos a mercê pelo resto da vida.
Com uma porção tão grande de estranheza, dá pra entender porque a mulher é alvo de tanta violência. Poucas pessoas suportam conviver com a diferença. Principalmente com essa diferença radical que o feminino representa.
Eu, que tenho por fardo a obviedade masculina, sou grato àquela que me põe cotidianamente em frente ao seu mistério. Essa outra de mim, que me ensina a conviver com meus abismos, com meus medos.

02 outubro 2006

Serenando



Deixa cair a noite,
cair sereno
o olhar sem fome
de seda e âmbar.
Aprende a ver sem esforço
o que a névoa quer te mostrar.

Deixa ficar no escuro
o que não queira
virar lembrança.
Deixa a memória
fazer escolhas.
Deixa o tempo brincar de esconder.

Deixa minar a prata,
arcar os ombros,
riscar as rugas,
dançar os nervos.
Testemunhas das carícias do tempo no teu corpo.

Deixa de presente a madrugada
aos novos feixes de luz e voz
que aprenderam contigo a caminhar.

Fica nesta noite que começa
em ondulações de luz e sombra
curiosas de te conhecer.