26 outubro 2011

O adiantado da hora



Existe um personagem invisível e malévolo que exerce uma única e enervante função: acabar com os encontros entre as pessoas pelo esgotamento do tempo. Este desmancha-prazeres universal responde pelo nome de Adiantado da Hora.

Desde crianças já somos atormentados por este espectro. No melhor da brincadeira, ele sempre mandava um representante de maior idade dizer que estava na hora de dormir. Já um pouco mais crescidos, quando os casais estão no ponto mais alto da refrega, ele sempre vem lembrar a hora da namorada voltar para casa. Mais tarde, é sua voz interna que nos lembra que o sol está nascendo e o trabalho nos espera daqui a poucas horas. É ele também que faz o outro virar de lado na cama com um bocejo, alegando o monte de coisas a fazer de manhã cedo.

Passei muito tempo sendo perseguido por este personagem, sem saber o seu nome. Só quando comecei a participar de seminários e congressos acadêmicos é que me foi revelado que as discussões finais teriam que ser abreviadas devido ao Adiantado da Hora. Foi quando me dei conta de que o funesto pé frio tinha acompanhado toda a minha existência, entrado na universidade comigo, atazanado meus estudos da graduação ao doutorado e agora me impedia de expor com clareza meus obtusos pensamentos.

Hoje, o Adiantado da Hora já não me causa aflição. Aprendi que nunca chegarei antes dele em canto algum. Aprendi que as coisas podem muito bem ficar inacabadas. Outros as terminarão ou as esquecerão para sempre. Aprendi a rir desse espectro que me fez apressar o passo, deixando de ver e viver as coisas boas que se arrastam lentas. Hoje, é um seu parente mais velho que me vem afligir os dias: o Adiantado do Tempo. Não sou Manoel Bandeira, por isso ainda me resta lavrar o campo, limpar a casa e por a mesa com cada coisa em seu lugar, antes que chegue a indesejada das gentes.

17 outubro 2011

Personal person


A coisa começou com a invenção do personal training. Ser uma celebridade e não ter o seu personal training era quase um pecado mortal. Como eu tenho uma propensão natural para a maldade, acho que isso foi invenção da mulher de algum endinheirado que descobriu uma forma segura de descolar uma grana para o seu jovem e atlético amante. A partir daí a moda pegou e começaram a aparecer as mais diversas variações de assistência pessoal. Tem o personal care, destinado ao consolo das senhoras da terceira idade. Tem o personal wear, para sugerir as esquisitices que as dondocas devem usar em situações específicas. Tem até o personal dog, que não é exatamente um cachorro de estimação, mas um cuidador de lulus e totós das madames que não têm mais tempo além do que gastam no cabeleireiro (personal hair, eu suponho) e na academia.
Pois bem, para não parecer um retrógado ressentido, venho me lançar no mercado como Personal Person. E o que vem a ser exatamente um personal person?
Trata-se, obviamente, de uma pessoa (eu, no caso) que se propõe a agir como um ser humano comum, sujeito a variações de humor e condições de saúde. Isto é bom, porque oferece o elemento surpresa, o cliente nunca sabendo exatamente como eu vou chegar. Pode me pegar de bom humor ou completamente sorumbático, o que irá definir o tipo de assunto a ser conversado. Podemos falar de trivialidades, como o mais novo CD da Lady Gaga, ou pegar pesado com as previsões recentes sobre a economia global.
Como personal person posso ser usado numa fila de banco, na sala de espera do médico ou nos intervalos cada vez maiores das novelas. Mas o meu melhor aproveitamento será numa mesa de bar ou restaurante. Aí é que se disporá de um tempo agradável de espera, entre o pedido ao maitre e a vinda do garçom. Nada de self-service, portanto. Será aí, na penumbra e ao som de um piano que o seu personal person exercerá todo o encanto de uma pessoa ao mesmo tempo comum e diferenciada. Desde que seja pago por isso. Regiamente pago, bem entendido, como todo personal-qualquer-coisa que se preza.

02 outubro 2011

HD externo


Para quem ainda não sabe, um HD externo é aquela caixinha que se acopla ao computador que serve para guardar os arquivos que ficarão a salvo caso algum mal venha a acontecer com a memória do nosso PC.


Mas se engana quem pensar que o HD externo é uma invenção recente. Ele é apenas uma versão eletrônica de uma dispositivo que desde o início dos tempos vem tornando viável a vida da porção masculina da nossa espécie: a memória da mulher.


Sabe-se muito bem que nós, os homens, nascemos com um defeito congênito. No lugar da memória, trazemos uma vaga lembrança. Demonstramos desde muito cedo a nossa incompetência para saber onde deixamos os sapatos ou guardamos a baleadeira. Esquecemos de fazer a lição de casa e nunca entregamos aos pais os bilhetes da professora. Nosso primeiro HD externo atende pelo apelido de mamãe.


Acho mesmo que um casamento duradouro se deve, antes de mais nada, ao encontro entre um desmemoriado de nascença e um HD externo de confiança. Pelo menos no meu caso, a hipótese se confirma à exaustão. E não é apenas pelos pequenos deslizes rotineiros, tais como não saber onde está o celular, o documento do carro, a porta do guarda-roupas em que se escondem as camisas.


Minha vida correria sérios riscos sem o recurso permanente ao meu HD externo. Pelo menos minha vida social. Quando, por exemplo, você me ouvirem chamar uma moça de neguinha, querida ou coisa parecida, pode ter certeza: não lembro o nome dela. Meu velho, gente boa, amigão, são substitutos dos nomes dos homens que esqueço. Mas este vexame não ocorre quando meu HD externo está por perto. Basta uma cutucada discreta para ela se adiantar e cumprimentar a pessoa pelo nome.


O momento supremo desta ajuda se deu quando eu confessei minha angústia pela aproximação de um sujeito muito importante que eu esqueci o nome. Não será fulano de tal, adiantou minha mulher, na maior tranqüilidade. E era. Acontece que ela nunca tinha visto o tal fulano. Só de me ouvir falar dele, reconheceu o cara em plena rua. Com isto, acho que saímos do ramo da informática para entrar no âmbito mais obscuro do espiritismo.