22 maio 2008

Nossas senhoras



Eu fui fazendo vista grossa, deixando para a semana que vem e de repente minha casa virou um inferno de pequenos defeitos.
Comecemos pelo muro da frente e vamos contando pela ordem dos cômodos. O interruptor da campanhinha estava quebrado pela enésima vez, pois um maluco dá um murro nele toda vez que lhe é negada uma esmola. O portão automático estava fora do trilho, com a fechadura emperrada e uma das placas magnéticas danificada. Na certa tentaram arrombá-lo. Na área de serviço, a máquina de lavar, uma torneira e uma telha transparente esperavam conserto. Na cozinha, o gelágua parecia ter queimado o motor. O micro de apoio só ligava quando bem queria. O aparelho de ar condicionado do quarto estava com o compressor furado.
Podem não acreditar, mas esta revolta geral das coisas se concentrou numa única semana. O suficiente para deixar claro quem manda aqui em casa.
Tem pra mais de trinta anos que escrevi um poema sobre o poder que as coisas têm sobre nós. Veja que coisa singela:
O direito das coisas
meus óculos
meu relógio
minha caneta
minha maquina de escrever
meu carro
meu copo gravado com meu nome.

meus livros
meus discos
meu toca-discos
minha calça listrada
meus tamancos
minha carteira profissional.

as coisas a que pertenço
exercem sobre mim o seu direito
dando-me forma e movimento
determinando o que sou
mantendo a ilusão de que são minhas.

Quando escrevi o poema, não tinha a menor idéia do que me esperava pela frente. As coisas ainda disfarçavam a sua ascendência sobre mim. Hoje, elas jogaram suas máscaras fora. Exercem abertamente sua tirania e não perdoam qualquer tentativa de insubordinação.

imagem obtida em: casa.hsw.uol.com.br

18 maio 2008

Meia hora


Todo mundo tem medo de alguma coisa. André tinha medo de meia hora. Seu analista chegou a interpretar que ele temia perder a virilidade. Por isso lhe dava pavor o ponteiro dos minutos totalmente voltado para baixo do mostrador. Erro freudiano. André também tinha medo da meia hora em relógio digital.
A coisa era tão séria que, ao ver o ponteiro se aproximar do tempo fatal, ele tirava o relógio do pulso e ia se esconder em um lugar seguro. Só voltava quando já fosse qualquer hora e trinta e poucos minutos.
Não sabia muito bem o que poderia lhe acontecer de meia em meia hora. Mas a coisa era automática. Uma ponta de angústia lhe tomava o peito e ele já sabia. Nem precisava olhar o relógio. Prendia a respiração, fechava os olhos, controlava o tremor das pernas para depois ver tudo ir embora junto com o ponteiro em direção ao trigésimo sexto minuto.
Poeta famoso no quarteirão onde mora, André costumava ser reconhecido pelas meninas da vizinhança como aquele rapaz delicado que fazia versos de amor muito bonitos. Foi por isso que Marcela sentou junto dele na sorveteria e pediu: faz uma poesia pra mim. Olha, são quatro horas. Daqui a meia hora eu volto pra buscar.
O problema não era o prazo, pois André vivia treinando umas rimas para ocasiões extraordinárias como essa. O problema era a hora. Pegou o guardanapo, traçou as catorze linhas do soneto, mexeu um pouco para disfarçar o plágio, ficou uma beleza. Ainda admirava a obra quando começou a sentir o aperto no peito. Marcela não podia encontrá-lo assim, tremendo, resfolegando, suando as mãos. Correu para o banheiro.
Quando voltou, Marcela já saía pela porta da sorveteria. O relógio marcava quatro e trinta e cinco.
Clube do Conto da Paraíba, 17.08.2008
Imagem obtida em brandusblog.blogspot.com

15 maio 2008

Revisitando Millor





"Até aqui me ajudou o Senhor", disse o crente suicida ao passar pelo décimo andar, depois de se jogar do vigésimo.

Tristes tempos estes, em que os crentes se suicidam.

imagem obtida em investclub.blogspot.com

11 maio 2008

Estação Mandacaru


08 maio 2008

Ainda é maio


Não sei o que Dôra Limeira estava fazendo em maio de 68, ou antes e depois dele. Sei que ela tem o hábito de usar a bolsa com a alça cruzada no peito, sinal de que ela já levou muita carreira da polícia. Agora, eu sei bem o que Dôra estava fazendo no fim da tarde do dia quatro de maio de 2008. Estava participando da Marcha da Democracia, junto com a filha e o namorado desta. Quero só esclarecer que esta marcha foi organizada como protesto à proibição pela justiça de uma marcha anterior a favor da legalização da maconha. Vamos deixar a própria Dôra dizer o que viu, do alto dos seus setenta anos:
“Havia muitos jovens, muitas cores, sorrisos, brincadeiras e palavras de ordem. Era muita a energia que ali estava canalizada. Portavam e exibiam toscos cartazes em cartolinas, com mensagens escritas com pincel atômico. O que queriam aqueles jovens assim irmanados naquele momento, naquele espaço? O que diziam aqueles cartazes e faixas rústicas, algumas, podia-se ver, confeccionadas em casa? (...) Queriam eles que fossem respeitadas as suas opiniões, seu direito de ir e vir, queriam falar, dizer. Queriam sorrir, jogar fora mordaças, bradar por liberdade de manifestação.
“(...) No entanto, em dado momento, percebi um tumulto se formando em torno do carro de som. O que seria? Policiais de trânsito e policiais militares anunciaram que o carro não podia prosseguir, alegavam irregularidades burocráticas.
“Aquilo foi mesmo que jogar água fria na fervura. Mas a turma acatou, mesmo que a contragosto, fazer o quê?. A turma era gente do bem. Fariam a festa ali mesmo, em volta do carro, os microfones ligados, a música tocando, a multidão dançando no meio da rua. Não haveria a caminhada, mas apenas um protesto. Gentes sentavam no asfalto, encenavam mordaças, alguns iniciavam coros dizendo abaixo a repressão, democracia sim. Mas as autoridades só queriam truculências, tumultos. Policiais desligaram o som do carro, repuxaram fios, danificaram a instalação e fizeram um cinturão em torno do carro de som, como quem diz aqui ninguém encosta mais. Exacerbaram-se os jovens, até então muito calmos. Os policiais disseram ‘vamos levar o carro’. Os jovens disseram que não. Um rapaz se deitou na frente do carro para impedir, os policiais arrastaram o corpo do rapaz para que saísse da frente à força. Os policiais extrapolaram em suas posturas e levaram o carro embora. Vi quando os policiais espancaram um moço. (...) Ouvi impropérios, gritos de ‘abaixo a repressão’, insultos de lado a lado.
“De repente, que horror. Tropa de cavalaria invadiu a rua, os cavalo’s se postaram em posição de atacar. A turma se irmanou (...). O hino nacional avançou nas vozes afinadas dos manifestantes. Os cavalos ameaçaram pisotear todos. Vi repentinamente quando os animais avançaram na multidão, bombas de efeito moral explodiram. Meninos, rapazes e moças, senhores e senhoras, anciãs e anciãos correram atabalhoados para escapar das patas dos animais. Entrei em pânico, todos entraram em pânico. Algumas pessoas tentaram se proteger entrando nos bares, os cavalos entraram também nos bares, uma multidão correu para a areia da praia, tentando se proteger, os cavalos invadiram a areia galopando atrás da multidão. Eu não via mais nada, sabia apenas que precisava correr muito na areia. Finalmente, senti braços protetores em meus ombros e ouvi alguém me dizendo palavras de conforto. Era minha filha e o namorado dela falando comigo. Alguns rapazes desconhecidos também me cercaram em gestos de proteção.
Dôra está aí para nos lembrar que ainda existe maio. Que a chama que se alastrou pelas ruas do mundo em 68 ainda não se extinguiu. Ela ainda arde nos corações de pessoas como Dôra, prontas para ir às ruas com a alça da bolsa cruzada no peito, dispostas ao que der e vier.

01 maio 2008

O poema e o créu



O que pode um poema contra uma foto de Andressa Soares, a mulher melancia, na capa da Playboy? Para os pouquíssimos que ainda não sabem, a garota é aquela que fez o maior sucesso no último carnaval, e depois dele, agitando os 121 centímetros de diâmetro de sua bunda na famigerada dança do créu. Ela já deu entrevista no Jô, já apareceu no Casseta & Planeta, tornando-se figura obrigatória em qualquer aglomerado de celebridades.
Numa demonstração cabal da importância cultural que a mulher melancia alcançou, a revista com o seu imenso glúteo na capa foi lançada na livraria Nobel, em um Shopping do Rio, com sessão de autógrafos da própria fotografada. A foto está aí, para não me deixar mentir.
Uma das minhas preocupações com a garotada da oficina de leitura que ajudo a tocar no Bairro de Mandacaru, em João Pessoa, é com o nível das letras de música que eles, principalmente elas, cantam nos intervalos entre as atividades. É pornografia no seu nível mais direto e grosseiro. Sem metáforas ou meias-palavras. Isto sem falar na coreografia que ilustra os temas das peças musicais.
Constatando que de nada adiantava a minha reprovação verbal a cada demonstração áudio-visual, resolvi pedir que as meninas trouxessem as letras das músicas, com a intenção de fazer um paralelo entre o seu conteúdo e alguns poemas eróticos de autores como Drummond ou Bandeira, ou gente mais nova, como Marta Medeiros, Márcia Maia ou Vitória Lima. Ainda não posso relatar o resultado da experiência, pois ela ficou programada para o próximo módulo. Prometo prestar contas assim que tiver algum resultado, seja ele qual for.
Mesmo que não consiga muita coisa, sei que o meu trabalho irá se somar ao de muitos outros viciados em esperança. É muito pouco o que pode fazer um punhado de agentes sociais bem intencionados contra o poder de fogo das grandes redes de comunicação de massa. A luta é desigual. O créu está ganhando. Mas o poema insiste, como um mosquito da dengue.