26 agosto 2007

visita


Ela apenas sabia que era hoje. Não perguntem como ela sabia. Nenhum dado objetivo, nenhum aviso direto. Ela sabia. Uma certa languidez, um quase calafrio intermitente, uma leve nostalgia de paisagens vastas e indefinidas. Não queiram saber. Ela apenas sabia. Era hoje.
E como era hoje, ela tomou um longo banho morno, vestiu a longa camisola de seda branca, escovou os cabelos, molhou nuca e braços com água de colônia, fechou a porta do quarto com chave, vasculhou a rua oito andares abaixo, juntou as duas bandas de vidro da janela, deitou na cama de lençóis recém trocados, apagou a luz e dormiu.
Dormiu e sonhou com fogos de artifício, com cavalos correndo fogosos por prados, com círculos de dança ao redor de fogueira, com águas ardentes queimando docemente suas vísceras.
Acordou com a luz da manhã nascendo no seu rosto. O cabelo em desalinho, a camisola deslizada aos pés da cama, uma fadiga tênue nos músculos.
Ela sabia. Tinha sido há pouco. Um rumor de asas afastava-se da janela aberta.

21 agosto 2007

Fracasso


Vamos ter um pouco de coragem e olhar para o mundo em nossa volta. Quem são estes seres estranhos que erram sem nenhum sentido pela face da terra? Com que nome nomeá-los? Humanos? Somos seres humanos?
Somos, sim. Este é o nome do animal que erra para cada vez mais longe da sua animalidade. Um animal tem seus instintos para garantir seus padrões de conduta na preservação dos indivíduos e da espécie. O ser humano perdeu seus instintos, tornou-se um ser de cultura, movido por suas pulsões. Uma pulsão de vida e uma pulsão de morte.
A pulsão de vida, também chamada de eros, é aquela que agrega, que nos assegura a unidade do ser e nos faz procurar o outro. A pulsão de morte é a que separa o que não serve mais para continuar unido. Quando eros exagera em sua compulsão à ligação, é necessário que a sua irmã gêmea entre em ação, desligando os elementos, deixando-os livres para um novo trabalho de ligação erótica.

Voltemos a olhar sem medo o mundo em nossa volta. Estes seres errantes são o que sobrou do projeto de eros em construir uma humanidade. Perdemos a ligação com o outro e o pouco de erotismo que nos sobra serve, mal e porcamente, para manter uma individualidade inútil e destrutiva. Estamos no pleno regime da pulsão de morte. Aceitemos, pois, o momento de destruição.

O projeto humano fracassou. Resta-nos abandoná-lo e, a partir dos seus escombros, tentar construir o projeto de outro animal. Um animal solidário, com outro nome que a solidariedade nos dará.
Ilustração: Os despejados. Portinari

20 agosto 2007

Hai Kais


no dorso da folha
verdura de musgo
restos de banquete







metade da ostra
aberta sobre a terra
acolhe a semente

Joana, Larissa e Ronaldo

Exercícios coletivos na Oficina de Hai Kai
dirigida por Alice Ruiz.
Fotos de Joana Belarmino
João Pessoa, 17 a 19 de agosto de 2007.

16 agosto 2007

Polifonia



Diga o que lhe vem à cabeça. Não censure nada. E se você achar que é tolo ou vergonhoso o que lhe ocorrer, por isso mesmo é que você deve dizê-lo. Era isto o que Freud pedia aos seus pacientes. É a regra fundamental para que uma análise seja bem sucedida.
De minha parte, considero que esta regra deve estar no fundamento de toda convivência humana. Todos temos o direito de dizer tolices, bobagens, besteiras, idiotices, cretinices, blasfêmias, preconceitos, vulgaridades, além, é claro, de coisas sensatas e inteligentes.
Confesso que fico irritado quando ouço na rua o carrinho de som de um camelô de CDs piratas tocando um forró ou um funk pornográficos. Pior ainda quando o mau gosto vem amplificado pelo som de algum carrão. Mas logo me convenço que eles têm todo o direito de ouvir a música que bem entenderem, desde que respeitem os limites de decibéis permitidos por lei.
Claro que também me irrita o discurso intolerante e mal informado que ouço nas filas e feiras. Pior ainda quando vem amplificado pelos portadores de títulos e comendas. Mas logo me convenço que eles têm o direito de falar o que bem entenderem, desde que me permitam também expressar minha opinião.
A morte é uniforme. Só os regimes ditatoriais e as instituições fundamentalistas rejeitam a multiplicidade de pensamentos e a polifonia dos discursos, excluindo do seu convívio, muitas vezes com a morte, quem ousar ser minimamente diferente.
A vida é polimorfa. Cada ser vivo é único em sua maneira de estar no mundo. No caso do ser humano, a diferença é a condição essencial para a sua constituição como sujeito. Para Roland Barthes, num mundo em que só houvesse diferenças não haveria lugar para a exclusão. Aceitar-me como diferente e aceitar a diferença no meu semelhante. Falar e deixar falar dessas diferenças. Esta é a regra fundamental.



Ilustração: Gente, de Pedro Charters

07 agosto 2007

Um copo d'água


O corpo do homem sentado em minha frente estava seco. Seus músculos finos colavam nos ossos e eram cobertos por uma pele fosca, quase acinzentada. A alma daquele homem também estava seca.
Sua fala desfilava automaticamente uma série de registros, blocos de traços de memória, comunicados sem qualquer emoção: a casa em que sempre morou, uma velha mansão que já experimentara seus momentos de fausto, agora repartida apenas entre ele e sua mãe. Essa mãe distante, refugiada em seu quarto, que ele apenas entrevia quando passava pela porta do cômodo em penumbra. Aqui e ali uma breve menção a um pai, já morto, homem de prestígio enquanto vivo.
O resto era um amontoado de cenas curtas, flashes de suas errâncias noturnas: sessões coletivas de picos; baladas em boates gays; transas apressadas em banheiros mal-cuidados, despertar em lugares desconhecidos em companhia de estranhos, ou amargamente só e depenado.
O corpo seco do homem sentado em minha frente me dizia que havia muito pouco a fazer. Um copo d’água, pensei. E se eu lhe der um copo d’água? Mas não fiquei certo de que o copo d’água era mais importante do que a minha presença. Tinha que sair da sala para buscar água e tive medo do que ele pudesse sentir com a minha ausência. Não lhe dei água.
Teria sido a última vez. Não voltou mais à minha sala. Semanas depois, soube que tinha desistido da vida. Até hoje ainda penso que um copo d’água o salvaria.
Ilustração obtida em www.tracaja-e.net

05 agosto 2007

Carta


Ele passava geléia de framboesa na torrada quando o silêncio da sala deu passagem a um leve raspar de papel sob a porta de entrada do apartamento. André levantou-se com preguiça e, antes de apanhar o envelope, abriu a porta com má vontade, somente para desencargo de consciência. Óbvio que, seja lá quem tivesse posto o envelope por baixo da porta, já tinha se escafedido escada abaixo. André abaixou-se resignado e emergiu com a cara intrigada. O envelope não tinha remetente. Pelo menos remetente declarado. Metódico que era, voltou para a cadeira, sorveu um bom gole de café com leite, limpou a faca no miolo de pão e serrilhou com certo gozo o vinco superior do envelope. Tirou sem pressa o papel lá de dentro, abriu fingindo indiferença para si mesmo. Mas logo o fingimento deu lugar ao espanto na cara de André: o papel estava em branco. Virou a página. Também em branco. Branco também ficou André.
Poeta que era, André estava acostumado à angústia da folha em branco. Aquela vastidão assustadora a exigir: rabisca-me ou te devoro. Mas aquela folha recém saída do envelope não fazia exigência nenhuma. Deixava apenas um vácuo impossível de preencher. Nada que André pudesse imaginar poderia ser confirmado por aquele vazio. Um irmão mais novo a quem tivesse humilhado. Qualquer uma das muitas namoradas que tivesse abandonado. Um paranóico ciumento de algum dos raros poemas bem sucedidos. Uma mulher trágica a quem não adivinhou o amor tresloucado. O dono da padaria a quem não pagava há mais ou menos um mês.
André esqueceu o café na mesa e foi para o quarto. Deitou-se na cama com a folha em branco em frente aos olhos. E quando todas as hipóteses de remetentes foram esgotadas, continuou com os olhos fixos no papel até esquecer-se do tempo e de si mesmo.
Quando arrombaram a porta do quarto, viram o corpo pálido de André confundindo-se com a brancura da folha em branco que pendia de sua mão.
Ilustração retirada de diariopoetico.weblog.com.pt

02 agosto 2007

Vistam saias, meninas: é agosto

Publico de novo para quem ainda não leu.

Há um certo prazer em falar mal de agosto. Dizem que é o mês das bruxas, onde cai o dia das sogras, foi quando morreu Getúlio e costumam ocorrer desgraças políticas. Pouca gente fala bem de agosto.

Quase ninguém se lembra que é o mês do mais belo luar do ano, promovendo encontros e reconciliações entre os já românticos e convertendo ao romantismo alguns indecisos pós-modernos. Em mim, particularmente, o luar de agosto produz um estado intermediário entre uma lânguida melancolia e uma vontade enorme de uivar.

É certo que em alguns anos agosto lembra um velho sombrio, com suas nuvens cinzentas, suas chuvas fora de hora, invadindo maleducadamente com seus miasmas setembro a dentro. Mas num ano como este, agosto merece ser tratado com toda a consideração. Já na primeira semana faz um sol quase de verão, esquentando um pouco a água do mar, levando à praia uma boa safra de mulheres e, vá lá, alguns homens dignos de nota. Só temos que aturar o vento forte, o bom vento de agosto que, se algumas vezes aborrece ao derrubar varais, espalhar jornais ou varrer areais, nos compensa com um dos mais belos espetáculos ao ar livre: a dança das saias.

E não me venham dizer que isto é coisa que só interessa aos homens. Alguma coisa me diz que as mulheres esperam ansiosas por agosto, preparam-se em academias e clínicas de beleza para o encontro com este mês abertamente masculino. E tenho certeza que uma pesquisa de mercado revelaria um forte incremento no comércio de saias ou cortes de tecidos para elas, cremes e óleos para pernas, além de peças íntimas de langerri a serem desvendadas num momento de estudada distração.

Os homens esperam por agosto como a um velho camarada. Um amigo maroto que faz por nós o que mais gostaríamos de fazer em plena rua: levantar as saias das mulheres.E reparem bem no rosto de uma mulher a quem o vento de agosto vai levantar a saia. Há, de início, uma certa expectativa, quase uma ansiedade, um temor de que não sopre vento nenhum e tenha sido em vão todo o preparo, todo o cálculo de chegar naquela esquina no momento em que um homem, ou um grupo de homens, passa atento pela calçada contrária. Logo, sopra o vento. Primeiro, de leve, deslocando os cabelos e fazendo a vítima fechar os olhos numa mescla de vago aborrecimento e satisfação. Quase um agradecimento.Ato contínuo, vem o farfalhar da saia. Aí é necessário que a dona da saia tenha alguma coisa em uma das mãos. Pode ser um sortimento de livros e cadernos, algum pacote não muito volumoso, até sacola de supermercado serve em certos casos. O importante é que apenas uma das mãos fique livre para segurar a saia em um dos lados, deixando o outro ao sabor do vento de agosto e dos olhos dos seus gratos amigos do outro lado da rua. O movimento, brusco mas não tanto, de segurar um dos lados da saia leva a um certo desequilíbrio que faz com que o volume sustentado pela outra mão ameace cair. Nisso, a mão que segurava a saia vai em ajuda à sua irmã, deixando agora todo o campo livre para o trabalho do vento e dos olhos.

Há variações do rito, é certo. A melhor delas é quando agosto apanha com seu vento um bando de mulheres no meio de uma ponte ou numa rua larga, de preferência ladeirosa, em que estejamos todos subindo. Mulheres na frente, como manda a boa educação, homens regulando o passo até alcançar a melhor distância para um visão de conjunto e, finalmente, ele, o ruidoso, o assobiador, o vigoroso e salutar vento de agosto, causando desordem e euforia, quebrando a monotonia das tardes friorentas. Estamos no começo de agosto. Já é tempo, meninas, vistam saias. E deixem brincar com elas o vento de agosto, para o alimento de vossas vaidades e o bem dos nossos olhos. Antes que todos, olhos e vaidades, sejam desviados pelo despudoramento de setembro, escancarando corpos e tornando vulgar o jogo sedutor que agosto sabe tão bem jogar.

(Publicado em Memória curta, 1996)