05 agosto 2007

Carta


Ele passava geléia de framboesa na torrada quando o silêncio da sala deu passagem a um leve raspar de papel sob a porta de entrada do apartamento. André levantou-se com preguiça e, antes de apanhar o envelope, abriu a porta com má vontade, somente para desencargo de consciência. Óbvio que, seja lá quem tivesse posto o envelope por baixo da porta, já tinha se escafedido escada abaixo. André abaixou-se resignado e emergiu com a cara intrigada. O envelope não tinha remetente. Pelo menos remetente declarado. Metódico que era, voltou para a cadeira, sorveu um bom gole de café com leite, limpou a faca no miolo de pão e serrilhou com certo gozo o vinco superior do envelope. Tirou sem pressa o papel lá de dentro, abriu fingindo indiferença para si mesmo. Mas logo o fingimento deu lugar ao espanto na cara de André: o papel estava em branco. Virou a página. Também em branco. Branco também ficou André.
Poeta que era, André estava acostumado à angústia da folha em branco. Aquela vastidão assustadora a exigir: rabisca-me ou te devoro. Mas aquela folha recém saída do envelope não fazia exigência nenhuma. Deixava apenas um vácuo impossível de preencher. Nada que André pudesse imaginar poderia ser confirmado por aquele vazio. Um irmão mais novo a quem tivesse humilhado. Qualquer uma das muitas namoradas que tivesse abandonado. Um paranóico ciumento de algum dos raros poemas bem sucedidos. Uma mulher trágica a quem não adivinhou o amor tresloucado. O dono da padaria a quem não pagava há mais ou menos um mês.
André esqueceu o café na mesa e foi para o quarto. Deitou-se na cama com a folha em branco em frente aos olhos. E quando todas as hipóteses de remetentes foram esgotadas, continuou com os olhos fixos no papel até esquecer-se do tempo e de si mesmo.
Quando arrombaram a porta do quarto, viram o corpo pálido de André confundindo-se com a brancura da folha em branco que pendia de sua mão.
Ilustração retirada de diariopoetico.weblog.com.pt

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