28 setembro 2008

Trigal


Urubus em revoada
denunciam
a orelha decepada
que o trigal esconde.

Ronaldo Monte
Clube do conto da Paraíba
26.09.2008
Imagem obtida em: docafundo.blogspot.com

27 setembro 2008

Entre a Lapa e o Abasto






Estive na Lapa um dia destes. Quer dizer, não estive na Lapa. Pois a bem dizer, a Lapa não existe. O lugar onde estive é um arremedo daquilo que um dia foi a Lapa. Gastaram-se fortunas para fazer com que os bares ficassem parecidos com os botequins de antigamente. Um considerável aparato policial garante a segurança do faz de conta da classe média que devaneia procurando dar de cara com Madame Satã, ou sentar na mesma mesa de Noel Rosa e Araci de Almeida.

Um dia destes estive em Abasto. Da mesma forma, não estive em Abasto. Assim como a Lapa, o velho reduto portenho do tango, com seus becos, suas putas e cafetões foi maquiado para receber a classe média. Seu belo e imponente mercado público foi transformado em um shopping de luxo, sob o olhar complacente de uma estátua de Gardel.

Lapa e Abasto retratam muito bem o destino de muitos lugares do mundo. Transformaram-se em não-lugares. Ninguém mais mora lá. As pessoas passam, olham, compram, comem, bebem e vão embora.

O não-lugar foi o que restou para nós, a classe média da contemporaneidade. Vivemos nostálgicos de antigos lugares que não nos pertenceram. E os lugares que nos pertenceram viraram, quase todos, não-lugares. A casa em que nasci, a rua em que cresci, o colégio em que estudei, tudo isso desapareceu ou se transformou em ruína, supermercado ou templo evangélico.

Lapa, Abasto, Cidade Baixa, Recife Antigo, Centro Histórico de João Pessoa. São muitos os não-lugares que a pós-modernidade nos oferece na impossibilidade de nos preservar uma continuidade histórica.
Estive na Lapa, estive no Abasto. Pisei o mesmo chão que os antigos pisaram. Dobrei as mesmas esquinas que os bambas dobraram. Mas a linha do tempo se partiu. Entre mim, Gardel e Noel existe um abismo que a saudade não pode transpor. Melancolia é o nome deste abismo.

19 setembro 2008

O bom ladrão


Ainda tem gente que continua mantendo opiniões conclusivas sobre o caráter das pessoas, como se o ser humano fosse uma tela uniforme e monocromática. O exemplo do ladrão de carro de Passo Fundo, no Rio Grande do Sul, pode nos ensinar muito sobre a cordilheira multicolorida que constitui cada um de nós.
Depois de furtar um carro numa madrugada, o ladrão descobriu, quarenta minutos depois, que uma criança dormia no banco de trás. Levou o carro para os fundos de um posto de gasolina e telefonou indignado para o plantonista do 190: “Vou ser sincero: eu roubei um carro que tinha um piazinho dentro e eu não vi. Manda uma viatura lá pegar o guri e avisa ao filho da puta do pai dele para não fazer mais isso. Avisa que, da próxima vez que eu pegar esse auto e tiver o piá lá, eu mato ele.”
Por conta da violência generalizada com que nos habituamos a conviver, seria muito mais congruente esperar que o ladrão abandonasse a criança em um lugar qualquer e mantivesse a posse do carro. Acontece que ele é ladrão, mas provavelmente é um bom pai. E foi o sentimento de revolta pelo descuido com a criança que o fez abdicar do fruto do seu trabalho. E a muito mais: ter de se denunciar parcialmente como ladrão à própria polícia.
Alguns psicólogos chamam de “dissonância cognitiva” a este tipo de ambigüidade, como se cada um de nós estivesse condenado a um comportamento coerente, lógico, linear. Na verdade, todos nós somos muito parecidos com o bom ladrão de Passo Fundo. Roubamos e amamos, muitas vezes à mesma pessoa, sem nenhuma obrigatoriedade de uma dessas ações anular o efeito da outra.
Isto fica bem claro no final do telefonema do ladrão: a sua indignação é tão grande quanto o seu amor à profissão. Vai continuar roubando, sim. Mas o suposto pai da criança está avisado: se esquecer mais uma vez o piá no carro, morre.


14 setembro 2008

O mal da inveja




Faz muito tempo que um amigo meu me advertiu: “olha cara, aqui em João Pessoa, o melhor parâmetro para se medir o sucesso de uma pessoa é a quantidade de invejosos que falam mal dela. Te cuida, pois já começaram a ter inveja de você”.
Esta advertência me veio à cabeça durante o lançamento dos dois livros de Tarcísio Pereira, quarta-feira passada, no bar do Teatro Santa Roza. O pobre do autor quase pediu desculpas pelo duplo lançamento. Sabia que iam falar mal dele pelos dois romances editados pelo Fundo de Incentivo à Cultura, do Governo do Estado.
Não é de hoje este pendor de Tarcísio para provocar a ira dos invejosos. Teve um ano em que ele publicou, de uma tacada só, doze peças de teatro. Caíram em cima do rapaz, chamando-o de prolixo e ambicioso, dentre outras coisas que deixaram arregalados os seus olhos infantis (como os olhos de um bandido).
Claro que ainda não li os novos romances de Tarcísio, O homem que comprou a rua e O sacrifício dos anjos. Mas talvez deixe que eles furem a fila, pois conheço a prosa do autor desde Agonia na tumba, de 1993. Gosto muito de tudo que ele escreve.
O que eu quero que Tarcísio Pereira saiba é que seus leitores não esperam dele qualquer pedido de desculpas pela sua capacidade de produção. O que não vamos desculpar é que seus livros fiquem dormindo no fundo da gaveta, ou num canto perdido de um HD.

Quando Tarcísio veio na minha casa me dar a honra de apresentar sua novela Uma noite no céu, em 2006, me falou que tinha mais quatro romances prontos esperando publicação. Juro por Deus que não senti nenhuma inveja. Principalmente porque achei que era mentira.
Imagem obtida em releitura.wordpress.com

11 setembro 2008

Publicado no número 100 do Rascunho




A CONDIÇÃO E O EXERCÍCIO QUE TRANSTORNARAM A VIDA DO SR. QUIJADA - Ronaldo Monte

En un lugar de la Mancha, de cuyo nombre no quiero acordarme, no ha mucho tiempo vivía un hidalgo de los de lanza en astilero, adarga antigua, rocín flaco e galgo corredor. (....) En resolución, él se enfrascó tanto en su lectura, que se pasaban las noches leyendo de claro en claro, y los días de turbio en turbio, y así, del poco dormir e del mucho leer, se le secó el cerebro, de manera que vino a perder el juicio.
Herdara o sobrenome do pai espanhol que cansou de viver na pobreza fora das muralhas da cidade de Toledo e veio morrer de pobreza numa casa de vila no bairro de Jaguaribe. Foi a única herança que seu pai lhe deixou: o sobrenome de Quijada. Odiava que o chamassem pelo nome de Miguel, pois ninguém o pronunciava como gostava, com o "ele" final acentuado, como seu pai o chamava. Também não gostava quando abrasileiravam seu sobrenome, esquecendo de pronunciar o "rê" no lugar do "jota". Antigamente reclamava, mas ninguém ligava. Afinal, quem iria saber como se pronunciava o nome de um contínuo de repartição pública estadual, de paletó puído e a barba sempre por fazer?
Pelo menos aqui, nestas páginas, vamos chamá-lo do jeito que gosta: Miguéll Quirrada. Mas vamos também respeitar a grafia original do seu nome, pois ele a preza muito: Miguel Quijada. É a única coisa na vida que o torna diferente da massa de contínuos que vagam invisíveis pelas repartições públicas municipais, estaduais e federais de qualquer lugar do mundo.
Miguel Quijada tinha um sonho. Possuir uma grande biblioteca, daquelas que as pessoas vêm de longe visitar, que os professores do bairro vêm pedir livros emprestados, que os vizinhos desdenham de pura inveja ou ignorância. Vivia à míngua, guardando cada centavo para gastar nos sebos ou nas prateleiras modestas reservadas nas livrarias às edições de bolso. Mas não se pense que comprava livros por vaidade. Lia cada um antes de acomodá-los na estante.
Quando a mãe morreu, ocupou o quarto dela com seus livros. Sem ninguém mais com quem se preocupar, passou a torrar com livros o que antes gastava com remédios. Sua biblioteca crescia a olhos vistos, agora acrescida de livros de edições recentes das grandes editoras, alguns até de encadernação em couro. Miguel Quijada amava sua biblioteca.
Acontece que livros não fazem café, não varrem a casa, não forram cama nem se deitam nela. Miguel Quijada quis uma mulher e a teve. Chamou para morar com ele uma vizinha solteirona, de nome Dulcinéia, que um dia ficou impressionada com sua biblioteca. Se gosta de livros, há de gostar de mim.
Dizem que algumas pessoas têm os olhos maiores que a boca. Não era o caso de Dulcinéia. Por mais que gostasse de livros, por mais que os devorasse com os olhos, seu estômago roncava, atrapalhando a concentração na leitura. Não teve dúvida. Pegou o exemplar d'O crime do Padre Amaro que acabara de ler e trocou por uns pacotes de bolacha de água e sal e um pouco de manteiga. Num domingo de manhã, em que foi procurar o exemplar das Edições de Ouro d'Os Lusíadas, Miguel Quijada notou a banguela na prateleira do lado da porta. Faltavam bem uns vinte livros. Interrogada, Dulcinéia fuzilou: livro não enche barriga de ninguém.
Miguel Quijada amava os livros. Mas não podia viver sem Duilcinéia. Muito menos impedir que ela vendesse os livros nas horas em que tinha de ir para o trabalho. Instalou-se então uma batalha cruenta. Miguel Quijada decidiu-se a reler todos os livros que ainda lhe restavam, antes que Dulcinéia os trocasse por bolachas. Varava as noites de olhos pregados naquelas páginas preciosas, se despedindo de uma em uma. A cada manhã, Dulcinéia entrava no quarto e levava para trocar por comida o livro que a mão do homem adormecido tentava proteger.
Um dia, ela entrou no quarto e encontrou Miguel Quijada sentado, de olhos abertos, apertando contra o peito um grosso volume de capa de couro verde, com o título impresso a ouro. Ela estendeu a mão, imperativa. Ele fez um não com a cabeça. Ou ele, ou eu. Você escolhe. Ele olhou para o livro e deu as costas para ela. Ela saiu porta afora para nunca mais.
Sozinhos, enfim, o homem e o livro. Miguel Quijada olhou para as estantes vazias, pronto para recomeçar. Não perdera tudo. Restava aquele ali, que colocou com cuidado sobre a mesa, abriu numa página qualquer, com os olhos anuviados pelo sono. O vento que folheou as páginas em sua frente movia agora as pás de um velho moinho lá para as bandas da linha do horizonte. Miguel Quijada montou em seu Rocinante e avançou de lança em riste contra o gigante que roubara sua amada.

RONALDO MONTE mora em João Pessoa (PB). É autor do romance Memória do fogo (Objetiva).

06 setembro 2008

Força estranha



Ela me ataca por dentro. Toma meu corpo de assalto. Não importa onde eu esteja. Na cama, na mesa, em frente ao computador. Não se anuncia. Assume o comando dos meus músculos, dos meus ossos, das entranhas. Obriga-me a movimentos desordenados, a estertores, solavancos, caretas e contorções. Deixa-me os olhos arregalados e turvos de lágrimas. O corpo todo dói.
A noite é o seu tempo de rainha. Odeia me ver dormir. Mas a luz do dia não inibe seu exibicionismo. Prefere os momentos em que preciso de calma e concentração. Tira-me do sério.
Não entendo o que ela diz, essa estrangeira. Emite sons de fera enlouquecida. Grunhidos de monstro de outro mundo. Nada nela faz sentido. Não sei a que vem, nem por qual motivo vai embora.
Meu pânico se antecipa ao seu ataque. Já me dou por vencido ao menor sinal de sua presença. Não adianta qualquer reação. Por isso continuo escrevendo, mesmo sabendo que agora mesmo ela vai entrar em erupção.
Não suporto mais esta tosse seca.

Ilustração obtida em: nautilus.fis.uc.pt