30 novembro 2006

Passar



Passará toda marca que o tempo
me deixar sulcar sobre a terra.
Toda marca que o tempo sulcar
no meu corpo também passará.

Passará toda marca que o tempo fizer
do teu corpo em meu corpo.
Passará o meu tempo e eu sei
que o teu tempo também passará.

Na lembrança do leito, arena
de liça de cavalaria,
passará um tropel no meu peito
e em teu peito também passará.

Quando, enfim, o tempo decidir
que será fim de tarde em meu corpo,
certamente teu corpo também
como o meu não amanhecerá.

Quando a noite baixar em meu corpo
e fizer escuro em teu corpo,
certamente sobre novos corpos
amanhecerá.

28 novembro 2006

Vítima da seca


Cometi meu primeiro poema comovido pelas fotos da seca estampadas nas páginas marrons da revista O Cruzeiro. Tinha meus oito anos de idade e virei uma espécie de gênio da família. Claro que não vou mostrar o poema para vocês. Guardo a sete chaves o pequeno caderno datilografado por meu pai com os meus poemas de infância. Meus filhos têm ordem expressa de incinerá-lo junto com o autor.
Mas o que mais me encabula até hoje não é a forma do poema, perdoável pela idade do poeta. O que não me perdôo é ter me deixado emocionar por uma reportagem que apresentava como novidade aos meus olhos de menino uma farsa que só fui compreender com o passar do tempo. A seca, a famosa seca, com suas caveiras de boi, seus flagelados, seus retirantes, suas terras calcinadas, seus urubus, é um espetáculo periódico que até hoje a imprensa joga em nossa cara. Espetáculo, sim, com seus atores principais, seus coadjuvantes, seus diretores, seus patrocinadores.
Há pouco tempo uma deputada estadual bradava pelo rádio do carro que era preciso levar ajuda urgente aos nossos irmãos nordestinos que sofrem o flagelo da seca. Queria poder dizer à nobre deputada que se tivessem aplicado honestamente toda a grana destinada a resolver os problemas da seca, os tais irmãos nordestinos estariam irrigando suas terras com água Perrier. Basta somar o que foi anunciado desde a célebre última jóia da coroa de Pedro II até o que foi torrado na discussão bizantina da transposição das águas do São Francisco.
Duvido muito que João Cabral ou Graciliano ainda gastassem tinta e tutano falando de seca no nordeste. Eles sabiam, como eu sei, que a seca é um fenômeno natural, de incidência previsível, e que seus efeitos podem ser combatidos com medidas efetivas e racionais. Fora isto, é um espetáculo competentemente encenado para fornecer bons lucros aos seus eternos gerentes e motivo para lágrimas aos poetas franzinos e inocentes.

26 novembro 2006

O Deus das formigas



Quando era menino, ganhei de presente um avião de baquelite dourado. A novidade era que a parte de cima da fuselagem, móvel e transparente, deixava ver as fileiras de poltronas lá dentro. Passava horas sozinho no oitão da casa, entretido com meu tesouro alado. A vantagem de brincar sozinho é que se pode brincar do que quiser. Então, eu brincava de ser Deus. E como o Deus bondoso da religião dos meus pais, eu levava as formigas para passear no meu avião. Como um Deus, eu adivinhava as vontades das formigas de roça e as levava de um formigueiro a outro para visitar seus parentes, resolver problemas de trabalho ou apenas para um passeio de férias. Abria a tampa do avião, lotava o salão com aquelas pequenas criaturas avermelhadas e lá iam elas, certamente alegres, pois não paravam quietas em suas poltronas.
Meu avião dourado perdeu-se no tempo e as formigas perderam sua divindade, pois perdi minha vocação para ser Deus. Mas o que para mim foi uma brincadeira de menino, para muitos ainda é um delírio levado a sério. Quantos deuses de formigas vemos hoje à nossa volta. Quanta presunção nesses homens que pensam que controlam nossas vidas, adivinham nossos desejos, satisfazem nossas necessidades. Quanta empáfia em seus julgamentos, quanta desenvoltura em dispor do bem público, quanta soberba em suas exibições auto-promocionais.
Interferem em nossas vidas, esses deuses, como o menino fazia com as formigas. Mas como as formigas do brinquedo do menino, tocamos nossas vidas à revelia da vontade das pretensas divindades. Pois sabemos que um dia o tempo irá roubar-lhes o brinquedo das mãos. E de mãos vazias eles reconhecerão a sua pobre condição de formigas.

22 novembro 2006

Dois poemas


Herança

Cuido com carinho
das palavras que herdei.
Das antigas e das novas.

As antigas,
gordas de sentido,
deixo-as descansar em minhas mãos
antes de lançá-las
de volta ao carrossel dos signos.
Relíquias
impregnadas de hálitos ancestrais.

As novas,
verdes de memória,
guardo no berço das mãos
até que estejam prontas
para a ciranda dos verbos.
Pontos luminosos
no discurso opaco do cotidiano.

Novas antigas palavras.
herança e testamento
de minha breve passagem pelo mundo.

05.12.04


Ofício paterno

Ouvir
o grito do teu corpo
no escuro.

Salvar
teu corpo dessa morte
prematura.

Colher
teu corpo desmembrado
do naufrágio.

Lançar
teu corpo derrelito
em praia firme.

Reter
o todo do teu corpo
nas retinas.

Rever-me no teu corpo.
Deixar-te com teu corpo
longe de mim.

12.11.04

19 novembro 2006

A rainha do arame



Vivia na corda bamba. Desde que entrou na troupe do Gran Circo Gitano, viver passou a ser uma atividade de risco. Seu coração andava por um fio.
Carlos Gonzalez, esse era o nome do seu desequilíbrio. Dono do circo, foi ele mesmo quem convidou Alice para fazer parte da companhia. Disse que ela era linda, que ia fazer o maior sucesso. Disse isso e a levou para dentro do seu trailer. Beberam cerveja, comeram galeto e foram pra cama. A cama apertada que Carlos Gonzalez nunca dividiu com ela. Desde a primeira noite, mandou que ela fosse dormir na barraca de Zuleide, a contorcionista.
Da boca de Carlos Gonzalez nunca saiu uma palavra de amor. Cigano só ama os cavalos, Alice ouvia do anão Meia Légua, seu melhor amigo no circo. Ficavam horas, os dois, sentados em cima do baú do anão. Alice contando e recontando sua vida, Meia Légua ouvindo tudo calado, só falando, no fim, alguma coisa para consolar Alice. Mas quando os lamentos falavam da falta de amor do dono do circo, ele sempre repetia: cigano só ama os cavalos.
Domingo sempre tem matinal. Todo mundo acorda cedo para preparar o espetáculo. Alice não acordou, pelo simples motivo de não ter dormido. Chorou tanto que Zuleide botou ela da barraca pra fora. Foi chorar no escuro, olhando para o trailer de Gonzalez a meia luz, balançando de vez em quando, Alice sabia muito bem por quê. Não queria saber quem estava lá. Foi acabar de chorar lá pras bandas da barraca de Meia Légua. Já sabia o que ia ouvir quando o anão desse por sua presença: cigano só ama os cavalos.
Não vá, Alice. Você não está em condições de andar nesse arame. Você não dormiu, está nervosa, tremendo. Capaz de você cair. Zuleide disse isso quando voltou do seu número e cruzou com Alice que se cobria com sua capa de cetim azul, pronta para entrar no picadeiro.
Eu sou a rainha do arame, Alice falou para si mesma, de olhos fixos no seu reino. De olhos fixos em Alice estava Meia Légua, no meio do picadeiro. Era ele que apresentava os espetáculos das matinais, para Carlos Gonzalez descansar. E agora, senhoras e senhores, Alice, a rainha do arame, vai realizar a perigosa façanha de atravessar o fio movimentando três malabares de ponta a ponta do picadeiro.
A mísera orquestra atacou um mambo e Alice partiu para a sua perigosa façanha. Fazia isso desde menina, não era uma noite sem dormir que lhe faria desistir. Do alto do seu arame, já no meio do caminho, os olhos de Alice ultrapassam a lona lateral do palco, indo bater no trailer de Gonzalez. Aí sua vista escurece, os malabares caem e o pé esquerdo derrapa do fio de aço. Alice não cai. É a rainha do arame. Mas o lado de dentro de sua perna mostra um risco vermelho sob a meia rasgada.
Ô, Alice... Lamenta Zuleide, já de roupa trocada, na última tábua do poleiro. Pra quê você foi olhar. Toda a troupe sabia que Gonzalez tinha passado a noite com a nova contratada. Diana, a deusa amazona.

16 novembro 2006

Hino a Epa



Grande mãe dos desastrados,
Deusa das pequenas quedas,
amparo dos escorregos.
Salve Epa.

Deusa dos palhaços,
dos velhos saltimbancos,
dos chefes provisórios,
dos reis da falta de jeito,
dos distraídos.
Salve Epa.

Bendita seja a Deusa
que revela o estranho sentimento
de quem ri da queda alheia
e ainda rindo
ajuda o outro a levantar.
Salve Epa.

Volta teu olhar
aos que tropeçam,
aos que não vêem os degraus
e perdem a pose,
aos que torcem o pé,
aos claudicantes.
Salve Epa.

Tende piedade de nós,
homens caídos
neste planeta
em
sua
eterna
queda
pelo
espaço.

14 novembro 2006

Apressados



Tem um ditado que diz: apressado come cru. Discordo. Apressado simplesmente não come. E, se come, não sente o gosto da comida. Falo isso por conta de dois comentários apressados sobre coisas que me dizem respeito.
O primeiro, foi feito no jornal virtual No mínimo – todo prosa, a respeito de um trecho do meu romance, Memória do fogo. Estava lá: “Pelo trecho, não acrescenta mais do que assistir a um episódio de ‘O Vidente’, do SBT. Trash de quinta categoria.”
O segundo, foi publicado por um leitor de uma coluna social a respeito da apresentação do Clube do Conto na Primeira Bienal do Livro da Paraíba: “Estive na Bienal ontem e fiquei feliz com o que vi nos estandes. Causou-me espanto, no entanto, discussão ocorrida no auditório com o pessoal do Clube do Conto da Paraíba. Pensei encontrar uma discussão literária, mas aqueles escritores me pareceram anacrônicos e medíocres. Saí com quinze minutos...”
Maria Valéria Rezende, um dos membros do clube, autora de O vôo da guará vermelha e de Modos de apanhar pássaros a mão, ambos publicados pela Objetiva, espantou-se com o prodígio adjetivante do comentarista: “Bastaram quinze minutos para o moço descobrir que somos anacrônicos e medíocres!”
A única coisa que consigo sentir por estes ejaculadores precoces da cultura é pena. Se não tivessem tanta pressa em exibir sua bile, se pudessem se abster do rancor a tudo que não satisfaz de imediato suas expectativas mesquinhas, ganhariam um quinhão maior de prazer em suas experiências com o mundo.
Apresados costumam morrer de inanição. A vida, meus caros, é algo a ser degustado com calma e cuidado.

12 novembro 2006

Moto contínuo



Lá vem o som que não me diz o que me quer e entra em mim cravando garras num lugar qualquer de dentro de onde fica espinhando querendo dizer, querendo dizer e não dizendo e me fazendo repetir o que eu não sei.
Lá vem a sombra e sua luz em movimento, vem de longe, chega perto e logo foge, me embaraça, sem dizer a que me vinha. Fica presa nos meus olhos essa luz e sua sombra, sugerindo uma forma que não sei denunciar.
Lá vem o frio e seu calor que me envolve e me acarinha, que me toca, me aperta, me alisa, me conforta, que me larga, me abandona, desampara e se aloja num lugar que não sei como alcançar.
Lá vem cheiro e catinga com notícias de outro mundo que me entra pelas ventas e se entranha nas entranhas desta carne que deseja ela mesma se juntar à outra carne de onde partem os odores sem jamais a encontrar.
Lá vem esta carne tenra se alojar em minha boca, jorrar essa água morna que desliza nos meus ocos e se infiltra nos meus ossos, construindo meus volumes, definindo meus limites para logo mais deixar-me no mais profundo abandono, no mais atroz desamparo, na mais cruenta agonia.
Lá vem, lá vem a palavra que me recria o som perdido nos meus ouvidos, que me compõe o fantasma, que me devolve o calor, que me relembra os cheiros, que me devolve o seio, que me lembra quem eu sou.
Lá vem, lá vem a palavra, reavivando os enigmas, desabrigando fantasmas, me deixando sem dormir.

05 novembro 2006

Ponto final



Desde a primeira vez que conversamos eu lhe disse: sou ciumento. Muito ciumento. Mulher que quiser casar comigo vai ter que pensar muitas vezes. Vou transformar a vida dela num inferno. Você não casou comigo enganada. Sabia que ao entrar nesta casa só sairia dela para o cemitério. Em vez de fugir de mim, você ficou fascinada pela idéia de viver numa prisão até a morte.
Durante todo o tempo em que vivemos juntos, nunca ouvi você reclamar dos meus zelos. Nunca mais você viu nenhum parente. Nem seu pai, nem sua mãe. Nunca deixei nenhum homem entrar em nossa casa. Mas você não pode reclamar que lhe tenha faltado alguma coisa. Nunca reclamei de sair para comprar suas roupas, mesmo as de baixo. Nem me recusei em consultar os médicos nas suas raras doenças. Nunca lhe faltou nenhum remédio.
Contratei uma empregada velha para cuidar de você, mas logo mandei embora, pois você começou a se afeiçoar a ela. E era isto que eu queria evitar. Que você se apegasse a qualquer pessoa. E não só isso. Quebrei ou joguei fora todos os objetos que você usasse com mais freqüência. Não suporto, nunca suportei que você tivesse a mais mínima atenção a qualquer pessoa ou coisa que não fosse eu. Mais do que isso, minha vontade mesmo era que você não tivesse nenhum desejo, nenhum apego por ninguém e por nada. Nem mesmo por mim. Só assim estaria seguro de que nada no mundo mereceria sua atenção. Só assim eu ficaria em paz sabendo que nada de você transitaria para outro lugar além de você.
Por algum tempo pensei que teria conseguido enfim mantê-la como prisioneira. Na forma mais pura e completa de aprisionamento. Mas agora, que chego em casa e vejo você olhando para o meu retrato, vejo que falhei no meu mais caro projeto. Adeus.

02 novembro 2006

Microcontos



A sombra

Nada que ele pudesse fazer contra o fato consumado. Sua sombra era de uma mulher. Estava lá, na parede do quarto, a silhueta: saia rodada até os pés, o cabelo preso num coque. Virava-se de lado e via, pelo canto do olho, os óculos redondos na ponta do nariz. Era de uma mulher antiga, sua sombra. Tinha seios fartos e braços roliços. Não queria reconhecer, mas cada vez mais tinha vontade de igualar-se à sua sombra.




Nas nuvens

Um elefante, um cavalo, uma girafa. Um monte, uma casa, uma barca. Uma cara de menino, uma cara de palhaço, uma ponte entre arbustos. Deitada na praia uma moça olha as nuvens. Dois olhos, dois seios, um umbigo. Um púbis, um joelho, um dedão do pé. Ao lado da moça, passeiam olhos no céu do seu corpo.




Plebiscito

- Se der sim, eu a mato. Se der não, eu me mato.
Deu não.