26 novembro 2006

O Deus das formigas



Quando era menino, ganhei de presente um avião de baquelite dourado. A novidade era que a parte de cima da fuselagem, móvel e transparente, deixava ver as fileiras de poltronas lá dentro. Passava horas sozinho no oitão da casa, entretido com meu tesouro alado. A vantagem de brincar sozinho é que se pode brincar do que quiser. Então, eu brincava de ser Deus. E como o Deus bondoso da religião dos meus pais, eu levava as formigas para passear no meu avião. Como um Deus, eu adivinhava as vontades das formigas de roça e as levava de um formigueiro a outro para visitar seus parentes, resolver problemas de trabalho ou apenas para um passeio de férias. Abria a tampa do avião, lotava o salão com aquelas pequenas criaturas avermelhadas e lá iam elas, certamente alegres, pois não paravam quietas em suas poltronas.
Meu avião dourado perdeu-se no tempo e as formigas perderam sua divindade, pois perdi minha vocação para ser Deus. Mas o que para mim foi uma brincadeira de menino, para muitos ainda é um delírio levado a sério. Quantos deuses de formigas vemos hoje à nossa volta. Quanta presunção nesses homens que pensam que controlam nossas vidas, adivinham nossos desejos, satisfazem nossas necessidades. Quanta empáfia em seus julgamentos, quanta desenvoltura em dispor do bem público, quanta soberba em suas exibições auto-promocionais.
Interferem em nossas vidas, esses deuses, como o menino fazia com as formigas. Mas como as formigas do brinquedo do menino, tocamos nossas vidas à revelia da vontade das pretensas divindades. Pois sabemos que um dia o tempo irá roubar-lhes o brinquedo das mãos. E de mãos vazias eles reconhecerão a sua pobre condição de formigas.

Um comentário:

Anônimo disse...

Ronaldo, belo texto, mas com um final demasiado religioso... rs
Prefiro o caos, revolta, semear a discórdia! rs
Pisar nas formigas que se pretendem Deus e duvidar de um Deus que nos pretende formigas...

abraço.