23 fevereiro 2007

Margens











Passava um rio entre as margens deles.
À margem, passava a tarde.
De margem a margem, a ponte.

Em meio à tarde,
em meio à ponte,
súbito
tocam-se as margens.

O que é isso, ela pergunta.
Um beijo, diz ele.
Como podia ter dito
: uma tarde.
Ou dito de outro modo
: uma ponte.


Foto:Alex Faje

17 fevereiro 2007

Ofício





Quando o marido morreu, ela não sabia o que fazer. Pois depois que casou, ele nunca deixou que ela fizesse nada. Não podia sair, nem pra ver a família. Não podia conversar com ninguém. Até com a empregada velha que cuidava da casa ela não podia falar. Se ele pegasse, ela ia pro quarto de porta trancada a chave. Tudo que ela precisava, ele trazia da rua. Roupa, sapato, remédio. Só servia para a cama. Isso ele dizia que ela fazia bem. Mas só dizia perto do fim, enquanto gozava. Depois não tocava no assunto. Por isso, quando ele morreu e ela procurou uma coisa para ganhar a vida, foi só isso que lhe passou pela cabeça.
Daí que pegou uma tampa de caixa de sapato, tirou as bordas, fez dois furos por onde passou um cordão e pendurou na porta da casa. Lia-se em letras redondas escritas com esmalte: fode-se.
O primeiro a passar foi o padeiro. Quando leu o anúncio, empurrou a porta que não estava no trinco. Foi até a cozinha, onde ela esperava. Botou o pacote de pão ma mesa, pegou na mão dela e a conduziu para a cama.
Gozou uma vez, gozou duas e três. Levantou-se arfando, vestiu-se às pressas, saiu e trancou a porta, levando a chave no bolso.

15 fevereiro 2007

Queria ser católico



Sempre tive a maior inveja dos católicos. Principalmente dos amigos que foram para o seminário, tiveram uma educação de primeira, depois largaram a batina pelo primeiro rabo de saia que maculou seus beatíficos olhos. Sempre levei desvantagem toda vez que tive de concorrer com essa turma. Eles sabem o que é um pluralia tantum.
Mas minha inveja é mais antiga. Quando nasci, meu pai era acólito de uma Igreja Batista, em Maceió. O que significava que eu e meus irmãos éramos obrigados a ir à escola dominical que começava às nove da manhã. Imagine o que me roia por dentro quando via aquele bando de católico, de missa assistida e roupa de banho, caminhar alegremente para a praia, enquanto eu, de camisa de manga comprida, me arrastava bisonho, sabendo do calor que me esperava nas pequenas salas onde nos ensinavam a amar a Deus e aos americanos.
Pior era no carnaval. Lembro da mescla de ódio e inveja que senti quando, em pleno domingo, um desses cultores de Momo, já de antemão condenado aos infernos, disparou sua pistola contra minha imaculada camisa branca, fazendo uma mancha vermelha bem na altura do meu coração. Sangrava de raiva. Morria de inveja.
Felizmente, quando fomos para o Recife, meu pai fez uma festa ligeiramente profana nos quinze anos de minha irmã. Passaram uns irmãos pela frente da casa e foram dedurar ao pastor. No outro dia, meu pai foi convidado a se retirar do rebanho, como alternativa à vergonha da expulsão.
Uns dois anos depois, minha mãe me batizou numas Santas Missões. Mas aí eu já tinha uns treze anos e o azedume protestante já tinha feito seus estragos. Restaram apenas as lembranças de alguns hinos traduzidos dos spirituals negros e os cultos solenes de natal e ano-novo que eu trocaria muito bem pelas praias de domingo e a pândega dos dias de carnaval que só os católicos podiam ter.

14 fevereiro 2007

A tradução do mundo



Adolescente ainda, varava noites escrevendo à mesa do terraço de trás da casa de vila em Cavaleiro, subúrbio do Grande Recife. Os atabaques do terreiro de algum morro traziam para mim a pulsação do mundo. Meu trabalho de menino era, já, traduzir as pulsões do mundo humano com minhas parcas palavras, minha sintaxe precária.
Desde esse tempo me fascina a imagem de um homem ou uma mulher escrevendo noite a dentro, ilha de luz para onde convergem os sentimentos náufragos em busca de sentido.
O menino de Cavaleiro escrevia seus embriões de poemas a lápis, em qualquer papel que lhe caísse às mãos, mergulhado na noite quente e úmida do subúrbio. Hoje, o homem que conseguiu ser digita suas palavras confortado por seus livros num gabinete aconchegante. É o mesmo, porém, o fio de angústia que liga o menino ao homem. O corpo sofreu transformações: aqui e ali foi retalhado, curvou-se um pouco para a frente, pendeu um pouco para um lado. Mas o que move este corpo continua sendo a pulsação humana exigindo sua tradução em palavras.
O ser humano é um tradutor de si mesmo e do mundo que o cerca. Ele mesmo é a parte sensível do mundo a que tem acesso direto. Ao traduzir-se, traduz o mundo em sua volta. O homem fala, escreve, cozinha, pinta e borda. Seja qual for o seu trabalho criativo, sua finalidade última será sempre tentar decifrar os enigmas do mundo para não ser tragado por eles. A esfinge ainda está lá, na porta de Tebas. Ao tentar matar sua charada, adiamos a morte nas garras do monstro pluriforme.
O embate com o mundo, desde o nascimento, deixa marcas em nossa carne, traços de uma linguagem primitiva, em conflito permanente com a nossa fala articulada. Traduzir é promover o bem entre linguagens em conflito. O mal é falta de tradução.

06 fevereiro 2007

Ocaso



Já escurecia, mas Helena não acendeu as luzes da casa. Queria sentir o deslizar da tarde para dentro da noite. Ver a luz se degradar até que fizesse total escuridão. E se pudesse, ela também deslizaria com a tarde em direção a qualquer canto escuro onde se diluísse a alma exausta de luz. Não era bastante que anoitecesse. Não queria apenas deixar de ver. Queria ela mesma escurecer, anoitecer e caminhar com a noite contra a rotação da terra, singrando mares, rasgando terras, para sempre fugindo da luz.

Helena caiu antes da tarde. O telefone tocou às cinco horas. Era a voz de Augusto, apressada. Vou-me embora, ele disse, não queira saber pra onde. Se ficar aqui, posso morrer. E desligou. O corpo de Helena caiu na poltrona. A alma de Helena desceu aos infernos. Mais uma vez estava só. O homem que lhe havia aberto as portas do corpo e do mundo desembarcava de sua vida. Estavam juntos numa luta dura e difícil de vencer. Conhecer, denunciar e combater a malha de horrores que o tráfico tecia em volta deles era trabalho para muitos. E dos poucos que haviam, restaram eles dois. Havia dito a ele, ao seu Augusto, que nunca o deixaria só nessa peleja. E ele jurou que nunca a deixaria só.

Já é quase noite. Helena se levanta e percorre a sala em penumbra. Vai anoitecer. Vai mergulhar na sombra, mas não quer mais se diluir na noite. Sua alma voltará do inferno junto com a luz do dia. Helena amanhecerá.

Foto: Penumbra, Mário Godinho