14 fevereiro 2007

A tradução do mundo



Adolescente ainda, varava noites escrevendo à mesa do terraço de trás da casa de vila em Cavaleiro, subúrbio do Grande Recife. Os atabaques do terreiro de algum morro traziam para mim a pulsação do mundo. Meu trabalho de menino era, já, traduzir as pulsões do mundo humano com minhas parcas palavras, minha sintaxe precária.
Desde esse tempo me fascina a imagem de um homem ou uma mulher escrevendo noite a dentro, ilha de luz para onde convergem os sentimentos náufragos em busca de sentido.
O menino de Cavaleiro escrevia seus embriões de poemas a lápis, em qualquer papel que lhe caísse às mãos, mergulhado na noite quente e úmida do subúrbio. Hoje, o homem que conseguiu ser digita suas palavras confortado por seus livros num gabinete aconchegante. É o mesmo, porém, o fio de angústia que liga o menino ao homem. O corpo sofreu transformações: aqui e ali foi retalhado, curvou-se um pouco para a frente, pendeu um pouco para um lado. Mas o que move este corpo continua sendo a pulsação humana exigindo sua tradução em palavras.
O ser humano é um tradutor de si mesmo e do mundo que o cerca. Ele mesmo é a parte sensível do mundo a que tem acesso direto. Ao traduzir-se, traduz o mundo em sua volta. O homem fala, escreve, cozinha, pinta e borda. Seja qual for o seu trabalho criativo, sua finalidade última será sempre tentar decifrar os enigmas do mundo para não ser tragado por eles. A esfinge ainda está lá, na porta de Tebas. Ao tentar matar sua charada, adiamos a morte nas garras do monstro pluriforme.
O embate com o mundo, desde o nascimento, deixa marcas em nossa carne, traços de uma linguagem primitiva, em conflito permanente com a nossa fala articulada. Traduzir é promover o bem entre linguagens em conflito. O mal é falta de tradução.

Um comentário:

Anônimo disse...

O couro dos bombos é um mundo que pulsa para os corpos que sentem, eis aí uma ato que fascina e provoca reflexões.
Só enganchei no " Traduzir é promover o bem entre linguagens em conflito. O mal é falta de tradução".
Não sei, Ronaldo, até onde essa promoção não passa por apenas um conveniente desatar dos nós de um conflito, ao invés de uma exposição de uma verdade apenas presente.
Gostei de seu texto (como sempre). Um abraço.