25 fevereiro 2010

As grandes decisões

Acompanhemos aquele homem que caminha pela praia. Veja que não falei que ele anda ou passeia. Caminhar, hoje em dia, na praia ou em qualquer outro lugar, tem um sentido preciso de prescrição médica. Seu colesterol está alto, você precisa caminhar. A ordem está dada. O problema é tomar a decisão de cumpri-la. Segunda-feira começo, diz o homem, seguro dessa primeira tomada de posição. O próximo ponto a decidir é qual a segunda-feira em que começará.

Mas se já o estamos vendo caminhar é porque, de uma forma ou de outra, tal decisão já foi tomada. Precisamos agora acompanhá-lo mais de perto, pois a qualquer instante terá de tomar uma das mais difíceis decisões de sua vida: girar o corpo e fazer o caminho de volta. Quem caminha só, sabe o quanto é difícil decidir o momento e o lugar dessa meia-volta. Isto porque não há nenhuma convenção, nenhum acordo, nenhum condicionante exterior à decisão. Neste momento o homem está só e inseguro. O seu olhar para os circundantes é de puro desamparo.

Chamo agora a atenção para a desenvoltura com que os homens públicos tomam suas decisões. Vamos exterminar os judeus. Vamos invadir o Iraque. Vamos confiscar a poupança dessa cambada. Vamos elevar a taxa de juros. Vamos fazer caixa dois e mentir para esses otários nos elegerem novamente. Diferentemente do nosso caminhante da praia, o homem público nunca está só. Há sempre um grupo interessado em se locupletar com a sua decisão. Outra diferença é que suas decisões nunca o implicam pessoalmente. Ele não é judeu, não vive no Iraque, não é burro para ter poupança em banco nacional, há sempre um jeito de se ganhar alguma coisa com a inflação e, se não for reeleito, haverá sempre um lugar para ele e seus afilhados em alguma estatal.

Só e entregue à angústia de sua decisão, o homem da praia tem um privilégio que nenhum homem público jamais desfrutará. Pelo menos ali e então, ele prova a liberdade de decidir sobre o seu próprio destino.

22 fevereiro 2010

A nova Malu


Eu era assim:

Agora sou assim:




Agora é pra valer:
muito prazer, Malu.

16 fevereiro 2010

As coisas se ajeitam





Eu estava começando minha vida de adulto, com mulher, uma filha, uma faculdade para pagar, sem falar de feira e aluguel. Some-se a isto, um pequeno detalhe: estava desempregado. Por mais que meus cabelos grandes, minhas calças jeans e uma bela bolsa de couro de alça longa fizessem pensar o contrário, depois de algum tempo comecei a ficar apavorado. Comecei a ter dúvidas sobre o futuro que havia traçado para mim. Não lembro muito bem qual era, mas era um bom futuro. Era impossível alguém na minha idade não ter um bom futuro. Pois bem, alguma coisa ruim dentro de mim começou a querer envinagrar os meus sonhos.


Foi quando aconteceu uma das poucas coisas extraordinárias na minha vida. Estava chamando o sono, naquele estado de lusco-fusco entre a vigília e o sonho, quando me apareceu um anjo velho, cabelos compridos em caracóis, poucos dentes na boca semi-aberta. Ele me olhou com uma cara marota, feito quem não estava ligando a mínima para o meu sofrimento. Aproximou-se bem da minha cara e me disse com firmeza: toque em frente que as coisas se ajeitam.


Saí do meu estado hipnótico com um sentimento de grande simpatia pelo velho anjo. Com a sua experiência, sabia muito bem que eu não tinha condições de assimilar nenhuma máxima filosófica. Tampouco teria paciência para aquele discurso metido a besta dos anjos do Velho Testamento. Disse-me tudo o que eu precisava ouvir nos meus vinte e poucos anos. E foi exatamente o que fiz. Toquei em frente e as coisas se ajeitaram.


Muito tempo depois, as coisas devidamente ajeitadas, o anjo velho me apareceu de novo. Desta vez, não me disse nada. Remava lentamente uma canoa sobre um rio escuro e lento. Vi, de longe, suas asas lodosas, com as pontas mergulhadas nas águas. Ele olhou para mim com o seu sorriso maroto e fez um leve sinal com a cabeça me mostrando o muito que ainda tinha a remar. Lembrava um pouco Caronte, o barqueiro da morte. Mas não levava ninguém no bojo da canoa. Passava apenas para me lembrar que ele mesmo tinha como sina tocar para frente a barca dos seus dias. E se as coisas se ajeitavam para um anjo, haveriam também de se ajeitar para um pobre mortal como eu.

10 fevereiro 2010

Um certo mal-estar




Existe algo no ar que não está nos deixando sentir muito bem. Comente com qualquer pessoa ao seu lado, seguramente ela também está sentindo o incômodo. Ninguém está dormindo direito, o tempo não está dando para nada, o resultado é pouco para o muito que se gasta de energia. Há um palpável excesso de mal-estar pairando em nossa volta.


O mal-estar, a angústia, são companheiros inseparáveis em nossa permanência no mundo. E se os suportamos é porque há sempre dentro de nós um projeto, uma esperança de que um dia essa coisa ruim vai passar. É uma ilusão necessária para que permaneçamos vivos. Os que perdem suas esperanças, os desesperados, fazem a opção extrema de desistir do mundo. Matam-se.

Até um certo tempo não era muito difícil ter um projeto de vida. A gente nascia já com um percurso esboçado pela família, pela geografia e pela classe social. Podíamos pensar em seguir a profissão dos nossos pais, ou entrar para o seminário, o convento ou o exército, se quiséssemos dar uma turbinada no projeto. Os mais abastados não precisavam mudar nada. Bastava seguir o curso tranqüilo do macro-projeto familiar.


De uns tempos pra cá, a maioria das profissões dos nossos pais desapareceu. Mais do que isso, desapareceram os postos de trabalho. Com isto, desapareceram muitos projetos de vida. O mundo de hoje, simplesmente, não dá para todos. A maior categoria de excluídos, hoje, é a dos sem-projeto. Sem esperança, portanto.



Antes, havia um jogo de cartas marcadas, em que se sabia de antemão quem ia ganhar ou perder. Hoje, ficou patente, com o recente desmantelo global, que nem o croupier nem o dono do cassino sabem como o jogo vai terminar.

O que fazer, então, frente ao caos e a incerteza? Só encontro uma resposta: manter a esperança, esta teimosia inata que nos mantém vivos. E junto a ela, construir uma coisa que não faz parte da natureza humana: a solidariedade. Você pode até discordar, mas a solidariedade não é uma qualidade inata. Inato é o nosso apego ao que nos é mais próximo, mais semelhante. A solidariedade exige o cuidado com o distante, o diferente, o estrangeiro. E a nossa tendência natural de humanos é nos fecharmos em nossa etnia, nossa família, nossa classe social. Em nosso mínimo eu.


Quanto mais nos excluirmos mutuamente, mais nos sentiremos sós e desesperançados. Pensemos nisto quando olharmos alguém à nossa frente com distância, indiferença e estranheza. A ponte que construirmos em direção a esse outro é a única saída para o nosso mal-estar no mundo.


Foto: Ana Patrícia Almeida - http://www.flickr.com/photos/anap/page7/

04 fevereiro 2010

Os olhos de Anita



Eu gostaria de viver no mundo refletido nos teus olhos. Mundo de manhãs serenas, tardes apenas mornas e noites de ilha sem farol.

Eu gostaria de dormir nas redes avarandadas dos teus olhos. Para ter pequenos sonhos, realizar ínfimos desejos e acordar ávido de novas imagens.
Teus olhos já choraram lágrimas prematuras que o amor e o cuidado estancaram. Sentiste cedo que o mundo dói, pois o mundo, então, era teu corpo. Agora já sabes toscamente que existe um mundo fora de ti. E sorves este mundo com teus olhos, filtrando já o que é bom e o que é mau. Tua mãe é boa. A ausência de tua mãe é má. O peito que dá o leite é bom, é mau o peito que não chega na hora em que dele necessitas. O aconchego morno é bom, muito calor ou frio não presta. É isto e mais teus olhos que constroem um mundo dentro de ti.
Eu queria teus olhos emprestados para fazer um mundo novo para mim. Um mundo diferente deste que meus olhos me mostram. Eu queria teus olhos para ver novas manhãs, inaugurar um céu e um mar estalando novidades em minhas retinas. Para ver o sol arrastar as sombras das coisas tarde a fora até que viesse a noite e com ela o meu descanso sossegado.

Eu queria morar nos teus olhos para olhar nos olhos dos outros e decidir na hora para quem estender os braços. Eu queria fitar-me com teus olhos para me ver um pessoa melhor, mais solidária, mais confiante naqueles que repartem comigo esta visão de terra devastada que eu não queria que teus olhos vissem.