16 fevereiro 2010

As coisas se ajeitam





Eu estava começando minha vida de adulto, com mulher, uma filha, uma faculdade para pagar, sem falar de feira e aluguel. Some-se a isto, um pequeno detalhe: estava desempregado. Por mais que meus cabelos grandes, minhas calças jeans e uma bela bolsa de couro de alça longa fizessem pensar o contrário, depois de algum tempo comecei a ficar apavorado. Comecei a ter dúvidas sobre o futuro que havia traçado para mim. Não lembro muito bem qual era, mas era um bom futuro. Era impossível alguém na minha idade não ter um bom futuro. Pois bem, alguma coisa ruim dentro de mim começou a querer envinagrar os meus sonhos.


Foi quando aconteceu uma das poucas coisas extraordinárias na minha vida. Estava chamando o sono, naquele estado de lusco-fusco entre a vigília e o sonho, quando me apareceu um anjo velho, cabelos compridos em caracóis, poucos dentes na boca semi-aberta. Ele me olhou com uma cara marota, feito quem não estava ligando a mínima para o meu sofrimento. Aproximou-se bem da minha cara e me disse com firmeza: toque em frente que as coisas se ajeitam.


Saí do meu estado hipnótico com um sentimento de grande simpatia pelo velho anjo. Com a sua experiência, sabia muito bem que eu não tinha condições de assimilar nenhuma máxima filosófica. Tampouco teria paciência para aquele discurso metido a besta dos anjos do Velho Testamento. Disse-me tudo o que eu precisava ouvir nos meus vinte e poucos anos. E foi exatamente o que fiz. Toquei em frente e as coisas se ajeitaram.


Muito tempo depois, as coisas devidamente ajeitadas, o anjo velho me apareceu de novo. Desta vez, não me disse nada. Remava lentamente uma canoa sobre um rio escuro e lento. Vi, de longe, suas asas lodosas, com as pontas mergulhadas nas águas. Ele olhou para mim com o seu sorriso maroto e fez um leve sinal com a cabeça me mostrando o muito que ainda tinha a remar. Lembrava um pouco Caronte, o barqueiro da morte. Mas não levava ninguém no bojo da canoa. Passava apenas para me lembrar que ele mesmo tinha como sina tocar para frente a barca dos seus dias. E se as coisas se ajeitavam para um anjo, haveriam também de se ajeitar para um pobre mortal como eu.

2 comentários:

Anônimo disse...

Lindo, Rona. Uma história meiga no meio do carnaval! Olha, eu também tenho uma experiência assim. Já não espero mais que me apareçam. Foram dois no meu caso. No mesmo ano. 1994. Mudaram muita coisa e certamente jamais os esquecerei.Os velhotes...Abraço grande, querido.

Gianna Martins disse...

O "anjo" mudou de tática, agora não utilizou os sonhos, falou através de suas mãos...obrigada, precisava "ler" esse conselho, pois estou no exato momento de vida que vc viveu tempos atrás, com exceção da "mulher" e da "bolsa de couro"...enfim, vou tocando para frente, as coisas devem se ajeitar.