29 março 2007

Zíaco e sua flor



Zíaco arrasta pelos bosques a sua enorme tristeza. Nunca, em toda a sua eterna vida, havia sentido em seu corpo a manifestação do desejo. Assim o tinha castigado Hera, pelo simples fato de ser irmão de Príapo. Ah, o feliz e adorado Príapo, filho de Afrodite e Dioniso, a quem Hera, por ciúme da capacidade de amar de Afrodite, fez nascer com os genitais enormes. Mas o castigo de Hera surtiu efeito inverso. Príapo passou a ser desejado e cultuado pelas mulheres que buscavam a fertilidade. Para consertar seu erro e vingar-se definitivamente de Afrodite, Hera destituiu totalmente de desejo o seu segundo filho, este Zíaco que erra pelos bosques.
O sofrimento de Zíaco tocou o coração das ninfas. Eco, a mais bela de todas, ela mesma vítima dos ciúmes de Hera, convocou as oréades, suas irmãs, para aquecer o coração de Zíaco. E ao ver o triste deus encolhido ao pé de um carvalho, o queixo cravado no peito, os braços pendentes sobre as pernas estiradas sobre as folhas secas, deram-se as mãos em roda e começaram a cantar e a dançar como nunca antes haviam cantado e dançado.
Primeiro são os olhos de Zíaco que se levantam para melhor ver a roda. Depois, o seu tronco começa a se deixar embalar pela cadência do canto e da dança. Logo é todo o seu corpo que dança e pula e grita no meio da roda das ninfas. E tanto dança e pula e grita, que o seu corpo todo lateja e enrubesce. E de tanto latejar e enrubescer, da parte mais em riste do seu corpo jorra um jato prateado que logo é sugado pela terra.
Para tristeza das ninfas, cumprindo o destino inverso do irmão, todo o corpo de Zíaco murcha, reduzido a quase apenas um bornal de pele vazio.
Coberta de lágrimas, é a própria Eco quem cava com as mãos uma pequena cova para o que restava do corpo de Zíaco. E mal acabara de apertar a terra com as alvas palmas, Eco e todas as oréades viram nascer do pequeno túmulo uma flor rubra como o mais forte dos vinhos. E logo compreenderam que aquela flor, a flor de Zíaco, haveria de reavivar o desejo dos homens.
Não acredites, pobre mortal, que esta flor esteja à venda em qualquer lugar deste mundo. Se precisares dela, pede às ninfas. Durante o teu sono tu as verás dançar e cantar, enquanto a flor de Zíaco brota no fundo do teu coração.

28 março 2007

A praga


O ambiente era soturno. Não só pela amplidão da sala, pelos móveis sóbrios, escuros, as janelas altas, solenes pelo peso das cortinas. Soturno também era o semblante dos homens que rodeavam a gigantesca mesa de reuniões.
O primeiro a falar foi o Presidente do Corpo de Acionistas. Você vai ter que compreender, Herr Ratz. O cargo de Diretor Presidente da nossa Corporação só pode ser ocupado por um homem casado. O produto que fornecemos é extremamente vinculado aos valores humanos mais conservadores. A nossa clientela jamais aceitaria que o nosso chairman of the board não tivesse um lar para onde voltar depois de um dia exaustivo de trabalho, onde uma mulher carinhosa e devotada o espera com o jantar quente, a cama morna.
Mas minha mulher disse que não vai. Ela detesta a Itália. O senhor sabe como são as alemãs. Ela disse que se eu for, vou só. Não me leva nem no aeroporto.
Isso é verdade, ajuntou o Secretário do Conselho. Já mandamos um emissário para sondar o assunto. Já tem até um advogado pronto para dar entrada no pedido de divórcio.
Sendo assim, retomou o Presidente, só temos uma alternativa. Arranjamos um casamento de conveniência com alguma moça decente que aceite uma soma razoável pela colaboração.
A cólera do Herr Ratz só foi contida pelo seu medo de uma expulsão sumária da Corporação. Limitou-se apenas a resmungar: um primeiro casamento pode ser uma infecção. Mas um segundo, não. Um segundo é uma praga.

25 março 2007

Inédito, diferente


Além de poeta esforçado, André era um leitor inveterado. Lia tudo que lhe caísse nas mãos. E o que lhe caiu nas mãos, pelas mãos de um moleque, foi o folheto de propaganda da Professora Triana. Seu olhar treinado de revisor num suplemento literário foi logo em cima do erro de composição já na terceira linha, em caixa alta e negrito. Num gesto autômato, levou a mão ao bolso da camisa para pegar a caneta. Não podia deixar passar um erro tão grosseiro. Agora sim, o tipógrafo poderia corrigir: Poder da fé.
A própria fé de André é que andava meio fraca. Não acreditava, por exemplo, que conseguiria chegar a tempo para a entrevista com Vilela, diretor administrativo de um jornal que lhe acenara com um bico de editor de cultura. Em decorrência disto, também não acreditava que teria o dinheiro necessário para fugir para bem longe com Rita, mulher do Vilela. Quem sabe a Professora Triana pudesse revelar o mistério que os envolvia, a ele, a Vilela e a Rita, pois o que acontecera entre eles era, de fato, um mistério.
Vilela, André e Rita. Três nomes, uma aventura e nenhuma explicação das origens. Vamos a ela. Os dois primeiros eram amigos de infância. Vilela seguiu a carreira de magistrado num desses cafundós, onde casou e juntou dinheiro. André entrou no funcionalismo, contra a vontade do pai, que o queria médico. Mas o pai morreu e André preferiu não ser nada, até que a mãe lhe arranjou um emprego público, no jornal do Governo. Ganhava-se pouco, mas em compensação trabalhava-se menos ainda, o que dava tempo de sobra a André para tecer seus versos, adular suas musas.
Depois de muitos anos e escassas notícias, toca o celular de André. É Vilela, que jogara a toga às urtigas e agora vinha para a Capital, sócio de um jornal com planos de expansão. Acabara de dar um giro pelo mundo com a mulher e agora chegava para tocar o projeto editorial. André foi esperá-los no aeroporto.
No táxi de volta, Vilela tomou o lugar da frente, junto com o motorista. Queria ver o que o tempo fizera com a sua cidade. No banco de trás, meio zonza pela estafa da viagem, Rita cochilava e de vez em quando sua cabeça tombava no ombro de André. Uma curva mais fechada jogou seu corpo todo contra os ossos do poeta. A curva se desfez, mas não se desfez a junção dos corpos. O pomo de adão em desvario, André atendia a custo à curiosidade quase infantil do amigo.
“Quereis fazer voltar para vossa companhia alguém que de vós se tenha separado?” Queria, sim. André queria de volta o calor daquele corpo, a maciez daquela mão que deslizava em sua coxa, aquele perfume que feria de morte suas ventas.
“Quereis saber alguma coisa sôbre os vossos estudos?”. Sim, André queria aprender a ser dissimulado, a ser sórdido, conseguir os favores de Rita mantendo a amizade fraterna de Vilela.
“Quereis destruir algum mal que vos perturba?” Claro. Tudo o que André queria era a destruição pura e simples do seu amigo Vilela. Desde que não fosse ele diretamente o destruidor.
“Quereis curar algum vício de embriaguês?” Sem dúvida, André estava embriagado. Viciosamente embriagado por aquela mulher que tivera próxima apenas por alguns minutos.
Quanto às “outras coisas que estiverem no seu desejo de obter”, André bem que queria um bom emprego, com um salário minimamente decente para poder ir para bem longe desta cidade com a mulher que o vitimara.
Vilela e Rita montaram apartamento e chamaram André para a inauguração. Só André que, surpreso, foi o alvo dos mimos de Rita e dos afagos de Vilela. O poeta não tinha muita certeza, mas sentia que havia uma certa disputa entre o casal. Cada qual tentava chamar mais a sua atenção. A cada poema que André recitava, Rita explodia em aplausos e Vilela desmanchava-se em elogios.
A certa hora, os dois desapareceram na cozinha, sussurraram alguma coisa e voltaram sorridentes. Vilela marcou uma entrevista com André na próxima segunda. Estava tudo arranjado. Faltava apenas acertar salário e o tempo do expediente. Disse isto, deu um grande bocejo, pediu desculpas por ter bebido um pouco demais e foi dormir.
Rita já tinha engatilhado mais uma dose de uísque e levou ela mesma o copo à boca de André. Ergueu-se um pouco e sugou o que tinha sobrado da bebida nos lábios dele, enquanto a mão disponível chamava o corpo magro do poeta para o seu. Pessoa discreta, esse André. Ninguém nunca soube o que se passou daí pra frente na sala recém inaugurada daquele apartamento.
Agora, já segunda-feira, passa da hora da entrevista e André sente-se em desespero. Se faltar, pode perder o emprego. Se for, seguramente deixará transparecer alguma coisa da qual o amigo possa desconfiar. E pior, muito pior. E se Vilela tivesse visto tudo o que se passou na sala? E se o sono fosse apenas um pretexto para confirmar o que já desconfiara desde o táxi do aeroporto? Em meio a essa agonia, toca o celular de André. Vilela. É o Vilela. Teve que se demorar num almoço, não daria tempo de estar no jornal na hora combinada. Estava meio indisposto, preferia ficar em casa. Por que André não ia pra lá, onde poderiam conversar mais à vontade?
Pronto. Vilela sabia de tudo e armara aquela cilada. Com o coração aos pulos, André leu mais uma vez o folheto da Professora Triana. Tinha nome de cigana, mas tinha vindo do Amazonas. Todo o seu material de trabalho também vinha de lá. Haveria ciganos na Amazônia? Mas isto era o que menos interessava a André. “Pois ela é a Professora das Cartomantes”, não podia ser confundida com “essas de passagem”. Tinha endereço certo e era bem ali, na esquina da rua em que André estava.
Toca novamente o celular. Já estou em casa. Como é, vem ou não vem? Ia sim. Mas foi primeiro consultar a cartomante. Não sabia que no Amazonas faziam baralhos de tarô e bolas de cristal. Mas a urgência o fez relevar os detalhes e estirar a palma da mão sob os olhos soturnos da Professora Triana. O senhor está muito assustado. Mas pode ficar sossegado que tudo vai acabar muito bem com uma pessoa que o ama muito.
O coração aliviado de André o conduziu sem pressa até a porta do apartamento do amigo. Ligeiramente afogueado pelo álcool do almoço, Vilela recebeu André com um sorriso largo, passou um dos braços pelos ombros ossudos do poeta e o levou até o quarto do casal. Temendo pelo pior, André viu um dos lados do enorme guarda-roupa totalmente vazio. A voz de Vilela era um ruído distante na cabeça que girava.
No dia da inauguração do apartamento, você deve ter notado que eu e Rita fomos ter uma conversa reservada na cozinha. Disputamos você no par-ou-ímpar. Quem tirasse par, ficava com você somente naquela noite. Quem tirasse ímpar, ficava para sempre com você. Rita tirou par. Mas depois não quis obedecer as regras do jogo. Aí tivemos uma grande briga e eu a botei pra fora de casa com tudo o que era dela. Esse lado do armário agora é seu. Esta casa toda agora é sua.
Livrando-se com dificuldade dos braços de Vilela, André disparou pela escada, achando aquilo tudo muito inédito. Muito diferente.

Lições da tarde


Publicado na revista Vida Simples, Edição 51, março, 2007. Clique na imagem para ampliar.

16 março 2007

Pedra na vidraça


Jogaram uma pedra na vidraça da janela da sala. Ela estava ocupada com não-sei-quê lá no quarto. Largou o que fazia e foi ver o que tinha acontecido. Não tinha acontecido nada. Havia só uma pequena mancha no vidro que na certa sairia com um pano molhado.
Quis se aborrecer, mas desistiu. A rua lá fora estava bonita, com os raios amarelados do fim de tarde lambendo com preguiça as casas da frente. Esqueceu o não-sei-quê lá dentro, arrastou a cadeira de balanço para perto da vidraça e ficou olhando a rua, até que um cochilo disse que era noite.
E assim ficou sendo por muito tempo. Toda vez que um não-sei-quê tomava conta do seu tempo, uma pedra batia na vidraça; Ela já sabia. Era hora de ir pra janela ver a tarde passar até o cochilo trazer a noite.
Não foi diferente naquela tarde em que a pedra bateu, a tarde caiu e o cochilo entrou noite a dentro, noite a dentro, noite a dentro...

14 março 2007

Já vi esse filme


Dessa vez é pra valer. Não volto mais. E se voltar, vou impor minhas condições. Vai ter que andar na rédea curta. Nada de cinema sozinha, barzinho com amigas, reunião não sei de quê até altas noites. Psicanálise, também, nem falar. Odeio essa inveja do meu pênis. O personal training também está fora de cogitação. O cara tem quase a metade da minha idade. E tem de parar de fumar. Pelo menos no banheiro. Pelo menos sem jogar a guimba na bacia sanitária.
Dessa vez é pra valer. Pode ser até que eu volte. Mas só se ela jurar que não vai mais me obrigar a comer ricota no café da manhã e salada de alface no almoço. Se ela prometer não puxar assunto enquanto eu faço palavras cruzadas. Pelo menos deixar de começar as frases dizendo “na minha modesta opinião”. Pelo menos me deixar terminar a minha modesta opinião.
Pode ser até que eu volte. Mas só se ela telefonar pedindo. Pode até nem pedir, mas tem que ligar por um motivo qualquer, desde que deixe a entender que está com saudade. Pode até não ser saudade, mas tem que deixar claro que precisa de mim para alguma coisa. Trocar uma lâmpada, matar uma barata. Ela morre de medo de choque e de barata.
Pode até ser, mas sob certas condições. Não pode levar livro pra cama. Ver televisão no quarto, nem pensar. Não pode ter dor de cabeça por mais de três noites seguidas. Não pode virar de lado e cair pesado no sono. Também não vale acordar no meio da noite e sair de fininho para telefonar não sei pra quem. Também não pode dormir de pijama, que dá trabalho de tirar. E quando, enfim, estiver fazendo amor comigo, não pode, por hipótese nenhuma, tentar dizer meu nome. Pra não me chamar de João, Barreto, Mariano, Cláudio, ou Raoni. Meu nome é tão simples, mas ela nunca acerta. Eu me chamo André.

Dois poemas


Moldura

Do lado interno das janelas
sanefas negras despejam
cortinas negras.

No meio da sala
o caixão negro
estreita o homem no seu bojo.
O terno negro
enobrece
a polidez defunta.

Longas velas bruxuleiam.

Há sol lá fora.
A morte é provisória.


Fosco
As cantoneiras
prendem os mortos
nas páginas cinzentas do álbum.

O papel de seda
antecipa
o manto fosco
da memória turva.
Foto extraida do site outside.cocainomano.com

09 março 2007

Letícia que desbotou

(Para outra Letícia que acabou de colorir)


Letícia era uma borboletinha amarela que vivia brincando com seus amigos no fundo de um quintal. Passava das quatro da tarde, Letícia já tinha tomado banho e trocado de roupa. Mesmo assim, foi brincar com sua amiga Tixa, uma lagartixa.
Acontece que tinha uma poça de lama que Letícia quis passar por cima. Deu um vôo rasante e suas perninhas espalharam a lama que sujou suas asas amarelas.
Puxa, Tixa, e agora? Se eu chegar em casa suja de lama minha mãe vai ficar furiosa. E você não sabe como é feio uma mãe borboleta furiosa. Ela vira uma fera.
Tixa, a lagartixa, nunca tinha visto uma mãe borboleta zangada. Mas não devia ser muito diferente de uma mãe lagartixa. Mãe, quando zanga, é tudo igual. Tixa teve pena de Letícia e resolveu ajuda-la. Deu uma carreira, apanhou uma pétala de flor bem macia e começou a limpar as asas de Letícia.

Acontece que, junto com a lama, a flor também tirou a cor das asas de Letícia. Aqui e ali, no meio do amarelo, apareceram umas manchas brancas, sem graça. A borboleta Letícia desbotou.
Nossa, Tixa, disse Letícia, agora é que minha mãe vai ficar furiosa. Nunca mais vou ter coragem de voltar para casa.
Esquenta não, disse Tixa. Lá no fundo do quintal mora um camaleão que é pintor. A gente vai lá, ele pinta as manchas de amarelo, fica tudo igual novamente. Sua mãe não vai nem notar.
O que elas não sabiam é que o camaleão era um pintor meio pirado, daqueles que gostam de tudo colorido. Deixa comigo, foi o que ele falou quando as duas contaram o que tinha acontecido. Pegou um monte de tubos de tinta, espalhou na paleta e começou a pintar as manchas brancas das asas de Letícia, cada uma com uma cor diferente.
Que obra de arte. Eu sou um gênio, gritou o camaleão quando terminou seu trabalho.
Letícia olhou para Tixa com os olhos arregalados. Tixa caiu na risada. Letícia teve vontade de chorar. Agora é que eu não volto mesmo pra casa.
Mas Tixa era uma amiga de verdade. Convenceu Letícia a ir até perto de casa e foi chamar a borboleta mãe que já estava preocupada com a demora da filha. Boa tarde, Dona Borboleta, falou Tixa, vim trazer um recado de sua filha. Ela quer fazer uma surpresa pra senhora. Mandou dizer que fez umas mudanças no visual e quer saber sua opinião.
Dona Borboleta ficou curiosa e acompanhou Tixa até o lugar onde estava Letícia. Foi um espanto. Letícia tremeu de medo quando viu a mãe. Mas a cara de Dona Borboleta se iluminou quando viu o colorido das asas da filha.
Que cores tão bonitas, Letícia. Quero minhas asas pintadas assim. Sempre quis ter asas coloridas, mas não tinha coragem de experimentar.
Letícia sorriu, levantou vôo e ficou girando em torno da mãe e de sua amiga Tixa. O sol já estava se pondo e seus últimos raios deixaram mais bonitas as asas de Letícia.


(Ilustração de Manuel Penha Graça)

07 março 2007

Herança


Cuido com carinho
das palavras que herdei.
Das antigas e das novas.

As antigas,
gordas de sentido,
deixo-as descansar em minhas mãos
antes de lançá-las
de volta ao carrossel dos signos.
Relíquias
impregnadas de hálitos ancestrais.

As novas,
verdes de memória,
guardo no berço das mãos
até que estejam prontas
para a ciranda dos verbos.
Pontos luminosos
no discurso opaco do cotidiano.

Novas antigas palavras.
Herança e testamento
de minha breve passagem pelo mundo.

04 março 2007

Feitiço




Estava amando loucamente a namorada do amigo. Mas só até aí a coisa parecia com a música do Roberto. Não foi procurar alguém que não tenha ninguém. Queria Anita. E só ela. Mas um mínimo de vestígio moral resistia em algum canto de sua alma, como lixo debaixo do tapete. Foi esse resquício de pudor que o levou a conceber uma estratégia que fizesse Paulo acabar com o namoro. Depois, sim, atacaria.
Treinou uma voz em falsete até atingir um tom verossímel de contralto. Sentiu um pouco de frio na boca do estômago enquanto teclava o telefone. Quando o amigo atendeu, vestiu com o mais puro veludo a voz que não sabia ter dentro de si.
- Oi, Paulo. Eu sei que você não me conhece, mas sou colega de trabalho de Anita, sua namorada. Ela também não me conhece, mas eu sei muito bem o que ela faz quando sai do trabalho. Sei, porque vejo o homem que vai apanhá-la de vez em quando, no fim do expediente. É claro que não é você. Sinceramente, não sei como ela prefere um sujeito feio e baixinho a um cara bonito e forte como você. E, além de tudo, inteligente, pois eu já vi você numa roda de amigos e você era quem tinha as opiniões mais sensatas, sem ser chato. Tudo o que você dizia era temperado com um delicioso senso de humor. Aquela mulher não lhe merece, Paulo. Ela só pensa em dinheiro.

E desligou. Desligou mas sentiu que faltava alguma coisa. Faltava ouvir a voz de Paulo, saber o efeito que suas palavras tinham causado. Saber o quanto ele tinha ficado perturbado, se precisava de algum conforto depois do choque violento que por certo levara. Afinal, nada do que havia dito sobre ele era mentira. Paulo era de fato bonito, forte e inteligente. Além do mais, era sensível. Devia estar sofrendo.
Não hesitou. Temperou novamente o contralto em falsete e voltou a teclar. Além do frio na boca do estômago, sentia agora o coração em disparada.