25 março 2007

Inédito, diferente


Além de poeta esforçado, André era um leitor inveterado. Lia tudo que lhe caísse nas mãos. E o que lhe caiu nas mãos, pelas mãos de um moleque, foi o folheto de propaganda da Professora Triana. Seu olhar treinado de revisor num suplemento literário foi logo em cima do erro de composição já na terceira linha, em caixa alta e negrito. Num gesto autômato, levou a mão ao bolso da camisa para pegar a caneta. Não podia deixar passar um erro tão grosseiro. Agora sim, o tipógrafo poderia corrigir: Poder da fé.
A própria fé de André é que andava meio fraca. Não acreditava, por exemplo, que conseguiria chegar a tempo para a entrevista com Vilela, diretor administrativo de um jornal que lhe acenara com um bico de editor de cultura. Em decorrência disto, também não acreditava que teria o dinheiro necessário para fugir para bem longe com Rita, mulher do Vilela. Quem sabe a Professora Triana pudesse revelar o mistério que os envolvia, a ele, a Vilela e a Rita, pois o que acontecera entre eles era, de fato, um mistério.
Vilela, André e Rita. Três nomes, uma aventura e nenhuma explicação das origens. Vamos a ela. Os dois primeiros eram amigos de infância. Vilela seguiu a carreira de magistrado num desses cafundós, onde casou e juntou dinheiro. André entrou no funcionalismo, contra a vontade do pai, que o queria médico. Mas o pai morreu e André preferiu não ser nada, até que a mãe lhe arranjou um emprego público, no jornal do Governo. Ganhava-se pouco, mas em compensação trabalhava-se menos ainda, o que dava tempo de sobra a André para tecer seus versos, adular suas musas.
Depois de muitos anos e escassas notícias, toca o celular de André. É Vilela, que jogara a toga às urtigas e agora vinha para a Capital, sócio de um jornal com planos de expansão. Acabara de dar um giro pelo mundo com a mulher e agora chegava para tocar o projeto editorial. André foi esperá-los no aeroporto.
No táxi de volta, Vilela tomou o lugar da frente, junto com o motorista. Queria ver o que o tempo fizera com a sua cidade. No banco de trás, meio zonza pela estafa da viagem, Rita cochilava e de vez em quando sua cabeça tombava no ombro de André. Uma curva mais fechada jogou seu corpo todo contra os ossos do poeta. A curva se desfez, mas não se desfez a junção dos corpos. O pomo de adão em desvario, André atendia a custo à curiosidade quase infantil do amigo.
“Quereis fazer voltar para vossa companhia alguém que de vós se tenha separado?” Queria, sim. André queria de volta o calor daquele corpo, a maciez daquela mão que deslizava em sua coxa, aquele perfume que feria de morte suas ventas.
“Quereis saber alguma coisa sôbre os vossos estudos?”. Sim, André queria aprender a ser dissimulado, a ser sórdido, conseguir os favores de Rita mantendo a amizade fraterna de Vilela.
“Quereis destruir algum mal que vos perturba?” Claro. Tudo o que André queria era a destruição pura e simples do seu amigo Vilela. Desde que não fosse ele diretamente o destruidor.
“Quereis curar algum vício de embriaguês?” Sem dúvida, André estava embriagado. Viciosamente embriagado por aquela mulher que tivera próxima apenas por alguns minutos.
Quanto às “outras coisas que estiverem no seu desejo de obter”, André bem que queria um bom emprego, com um salário minimamente decente para poder ir para bem longe desta cidade com a mulher que o vitimara.
Vilela e Rita montaram apartamento e chamaram André para a inauguração. Só André que, surpreso, foi o alvo dos mimos de Rita e dos afagos de Vilela. O poeta não tinha muita certeza, mas sentia que havia uma certa disputa entre o casal. Cada qual tentava chamar mais a sua atenção. A cada poema que André recitava, Rita explodia em aplausos e Vilela desmanchava-se em elogios.
A certa hora, os dois desapareceram na cozinha, sussurraram alguma coisa e voltaram sorridentes. Vilela marcou uma entrevista com André na próxima segunda. Estava tudo arranjado. Faltava apenas acertar salário e o tempo do expediente. Disse isto, deu um grande bocejo, pediu desculpas por ter bebido um pouco demais e foi dormir.
Rita já tinha engatilhado mais uma dose de uísque e levou ela mesma o copo à boca de André. Ergueu-se um pouco e sugou o que tinha sobrado da bebida nos lábios dele, enquanto a mão disponível chamava o corpo magro do poeta para o seu. Pessoa discreta, esse André. Ninguém nunca soube o que se passou daí pra frente na sala recém inaugurada daquele apartamento.
Agora, já segunda-feira, passa da hora da entrevista e André sente-se em desespero. Se faltar, pode perder o emprego. Se for, seguramente deixará transparecer alguma coisa da qual o amigo possa desconfiar. E pior, muito pior. E se Vilela tivesse visto tudo o que se passou na sala? E se o sono fosse apenas um pretexto para confirmar o que já desconfiara desde o táxi do aeroporto? Em meio a essa agonia, toca o celular de André. Vilela. É o Vilela. Teve que se demorar num almoço, não daria tempo de estar no jornal na hora combinada. Estava meio indisposto, preferia ficar em casa. Por que André não ia pra lá, onde poderiam conversar mais à vontade?
Pronto. Vilela sabia de tudo e armara aquela cilada. Com o coração aos pulos, André leu mais uma vez o folheto da Professora Triana. Tinha nome de cigana, mas tinha vindo do Amazonas. Todo o seu material de trabalho também vinha de lá. Haveria ciganos na Amazônia? Mas isto era o que menos interessava a André. “Pois ela é a Professora das Cartomantes”, não podia ser confundida com “essas de passagem”. Tinha endereço certo e era bem ali, na esquina da rua em que André estava.
Toca novamente o celular. Já estou em casa. Como é, vem ou não vem? Ia sim. Mas foi primeiro consultar a cartomante. Não sabia que no Amazonas faziam baralhos de tarô e bolas de cristal. Mas a urgência o fez relevar os detalhes e estirar a palma da mão sob os olhos soturnos da Professora Triana. O senhor está muito assustado. Mas pode ficar sossegado que tudo vai acabar muito bem com uma pessoa que o ama muito.
O coração aliviado de André o conduziu sem pressa até a porta do apartamento do amigo. Ligeiramente afogueado pelo álcool do almoço, Vilela recebeu André com um sorriso largo, passou um dos braços pelos ombros ossudos do poeta e o levou até o quarto do casal. Temendo pelo pior, André viu um dos lados do enorme guarda-roupa totalmente vazio. A voz de Vilela era um ruído distante na cabeça que girava.
No dia da inauguração do apartamento, você deve ter notado que eu e Rita fomos ter uma conversa reservada na cozinha. Disputamos você no par-ou-ímpar. Quem tirasse par, ficava com você somente naquela noite. Quem tirasse ímpar, ficava para sempre com você. Rita tirou par. Mas depois não quis obedecer as regras do jogo. Aí tivemos uma grande briga e eu a botei pra fora de casa com tudo o que era dela. Esse lado do armário agora é seu. Esta casa toda agora é sua.
Livrando-se com dificuldade dos braços de Vilela, André disparou pela escada, achando aquilo tudo muito inédito. Muito diferente.

Um comentário:

Márcia Maia disse...

Não posso deixar de rir com esse ( e o outro-esse) André. ;)
Um beijo.