10 agosto 2008

Bem fiz eu



Ainda bem que eu não escrevi nada no livro de lembranças dos quinze anos de Marcela. Não escrevi porque André roubou o livro de minhas mãos e se escondeu com ele no banheiro. André morria de ciúmes de mim. E não somente de mim, mas de qualquer cara que se aproximasse de Marcela. Principalmente hoje, em que ela simplesmente arrasou com esse vestido branco bordado a fios de prata, suspenso por finas alças sem qualquer serventia, pois os peitos de Marcela eram suficientes para sustentar o peso de todo aquele luxo.
Por nada neste mundo André abriria mão do privilégio de ser o primeiro a escrever no livro de lembranças de Marcela. Entrou sôfrego no banheiro, passou o trinco na porta e sentou-se na bacia sanitária com o livro apoiado nas pernas. A Bic tremia em suas mãos quando ele começou a desenhar com sua letra escarrapichada:
Aonde quer que vás, meus pensamentos Contigo irão...
Com quem quer que estejas,
teu amor sempre me pertencerá...

André leu e releu, achou bom, mas achou pouco. Daí, arriscou:

Qualquer que sejam os lábios que toques,
recordarás do sabor de meus beijos...
Bem sabes que jamais amará outro.
Sem reparar nos tropeções da concordância, a mão, já menos trôpega, bordou mais um arroubo ditado pelo coração:
Teu coração e teus sentimentos são meus...
Por mais que tentes fugir,
será inútil, Pois estás presa a mim...
Não dava mais para esperar. Bati com força na porta do banheiro e tentei arrancar o livro das mãos de André. Mas ele me empurrou e correu para junto de Marcela. Fiquei de longe olhando ela se afastar para junto das suas damas de honra com o livro nas mãos. Fizeram uma roda e riam olhando para André a cada estrofe lida com afetação por Marcela. Todas elas conheciam aqueles versos. Eles estavam impressos num cartão que eu entreguei junto com uma pulseira de artesanato. Claro que Marcela nunca iria usar a tal pulseira, o presente mais caro que pude comprar com meu salário de cobrador de movelaria. Mas os versos, feitos por um certo Hélio Marques, sabia que não esqueceria. Ela somente não esqueceu, como me devolveu pulseira e cartão, depois de enfiar nas mãos de André a folha arrancada do livro.
Bem fiz eu, que não escrevi nada, consolava-me enquanto descia a rua junto com o pobre André para nos consolarmos no botequim da esquina.


Ronaldo Monte. Clube do Conto, 09.08.2008

Imagem obtida em: projectoamizade.blogspot.com

Um comentário:

Anônimo disse...

Caro Rona,

Não tive o prazer de ouvir esta peça no clube do conto ( imagino que foilida lá) tampouco de ver André corar como personagem de uma de suas narrativas. De todo modo, vê-se que você não desaprendeu a escrever, assim como a sacanear com o nosso querido poeta afegão copm cara de bonzinho.

Um abraço,

Barreto