16 agosto 2008

A mancha vermelha



O velho Wan Tsu já tinha perdido a conta dos deslocamentos que tivera de fazer, obedecendo às ordens do Partido. De tanto que já havia se mudado, não sabia se sua mulher ainda estava viva, nem qual destino tinham dado a seus filhos. Jogado de um lado para outro, a depender dos grandes planos plurianuais, Wan Tsu tinha se despojado de seus míseros bens. Tudo o que lhe restava era a roupa do corpo, as botas surradas e um velho exemplar do Livro Vermelho do Camarada Mao Zedong.
Não entendia muito bem porque, mas depois da morte do Grande Timoneiro, quiseram confiscar o seu exemplar do Livro Vermelho. Teve que escondê-lo sob as tábuas do celeiro da fazenda para onde tinha sido mandado trabalhar na colheita. Carregou o volume escondido sob as calças quando foi removido para apertar parafusos numa fábrica de trator em Beijim. Agora estava carregando vergalhões de aço para a construção de um gigantesco estádio olímpico, mas o seu velho companheiro estava bem escondido dentro do forro do colchonete nos fundos do alojamento.
Wan Tsu nunca reclamou da vida. “A nossa posição é a do proletariado e das massas populares”, tinha escrito o Farol dos Povos. E o velho proletário acreditava que “o sistema socialista acabará por substituir o sistema capitalista”, como rezava o Livro, pois “essa é uma lei objetiva, independente da vontade do homem.”
Os olhos de Wan Tsu nunca viram o que se passava no mundo. Quando não estavam fechados, guardando o sono do velho dono nos longos deslocamentos, estavam olhando para baixo, pois o corpo gasto vivia curvado sob o peso das tarefas. Mas ali, de cima dos andaimes da construção monumental, seus olhos se assustaram com a visão maravilhosa do paraíso socialista. As largas avenidas apinhadas de automóveis que levavam os companheiros proletários para o trabalho. Rechonchudos e bem vestidos, os filhos dos proletários passeavam com sacolas cheias de tudo que o homem socialista necessitava para viver sem os excessos burgueses. Edifícios luzidios arranhavam os céus abrigando as famílias proletárias do sol e da chuva, do vento e da neve. Policiais elegantes e de luvas protegiam e orientavam os trabalhadores na volta para casa, depois de uma dura jornada de trabalho.
Turvados pelas lágrimas, os olhos de Wan Tsu não viram a chegada do mestre de obras que em nome do partido informou que aquela tinha sido a última etapa de trabalho da turma. Todos tinham que apanhar seus pertences e abandonar a cidade de Beijim, pois as Olimpíadas iam começar no próximo mês e o Comitê Gestor não queria nenhum maltrapilho perambulando pelas ruas da Capital.
Wan Tsu recordou a sua passagem preferida do Livro Vermelho e vociferou na cara assustada do mestre de obras: “A revolução não é o convite para um jantar, a composição de uma obra literária, a pintura de um quadro ou a confecção de um bordado. Ela não pode ser assim tão refinada, calma e delicada, tão branda, tão afável e cortês, comedida e generosa. A revolução é uma insurreição, é um ato de violência pelo qual uma classe derruba a outra."
Antes que a polícia atendesse aos apitos de alerta, Wan Tsu atracou-se ao mestre de obras e jogou-se com ele do último andar do colosso olímpico. Depois do baque, uma mancha vermelha maculava o asfalto proletário de Beijim.

Clube do Conto, 16.08.2008

Um comentário:

Anônimo disse...

¿Será que se deja llevar por la curiosidad y va a www.alasdeletras.blogspot.com?