08 fevereiro 2009

Um dia, um homem...



Minha mãe se casou com um homem bonito, de coração brando e alma de artista. Fazia teatro, pintava aquarelas, escrevia poemas. A casa de vila, num subúrbio perdido, estava sempre com o aluguel atrasado. Minha mãe sustentava a casa dando aulas de inglês. Meu pai passava as manhãs dormindo, acordava para o almoço e saía no meio da tarde. Voltava de madrugada, de olhos vermelhos e um sorriso perdido na cara. Minha mãe dormia sentada na cadeira de balanço, comigo no colo. Mais tarde me contou. Não esperava meu pai. Um dia, sonhava, um homem entraria pela porta e a levaria para uma casa bonita, com um jardim florido, numa rua com árvores e um carro na porta.

Minha avó se casou com um homem de bigode, sério e calado, dono de um armazém sortido na rua principal de uma cidade bonita do interior. Meu avô fechava o armazém às seis da tarde, jantava calado e saía para jogar baralho. Um dia, chegou afobado, quase de manhã. Acordou minha avó e ordenou que arrumasse a mudança. Tinha perdido o armazém e a casa no carteado e assim que clareasse ia entregar as chaves para o ganhador. Se mudaram para uma casa de taipa no fim da rua da Lama. Minha avó passava as noites acordadas olhando a porta. Mais tarde, contou pra minha mãe. Não esperava meu avô. Um dia, sonhava, um homem bonito viria e sairiam pelas ruas de mãos dadas, primeiro para o cinema, depois tomar sorvete, depois namorar na praia, depois morrer de amor.

Minha bisavó casou com um homem sem sorte. Estava sempre no lado errado da vida. Entrou na Coluna Prestes quando ela passou pela Paraíba, em 1926, de volta do Piauí. Fugiu quando o último recurso da tropa era se refugiar na Bolívia. Minha bisavó ficou dois anos esperando a volta do herói. A sorte lhe sorriu um pouco quando o marido foi trabalhar numa torrefação de café. Já era quase gerente quando veio a crise de 29 e o preço do café começou a desabar. A torrefação quebrou, o casal se mudou com os filhos para o Recife. Ainda viviam como remediados com a sobra das economias. Dava ainda para pequenos luxos, como tomar uma gasosa na Confeitaria Glória, no bairro da Boa Vista. Estavam justamente lá, num fim de tarde friorenta de julho, quando um homem desesperado gritou “João Pessoa” e atirou. Um tiro foi o que bastou para lembrar todo o sofrimento nas marchas da Coluna. Meu bisavô saiu correndo e foi preso como cúmplice do assassino. Minha bisavó voltou para a Paraíba com os filhos e desde então deixou de dormir. Passava as noites vigiando os passos na rua. Mas não esperava o marido. Ela mesma contou para minha avó. Um dia, sonhava, um homem de sorte bateria em sua porta com um buquê de flores e um anel de brilhantes. Tomariam um navio e viveriam felizes em Paris.

A mãe de minha bisavó foi roubada de casa por um fazendeiro. Quando ele perguntou se ela queria fugir, não disse que sim nem não. Mas deixou a janela do quarto aberta. Qualquer coisa seria melhor do que aquela vida miserável de trabalhar no eito. Foi morar numa casa grande, quase uma tapera. O pai do seu marido tinha sido rico, dono de escravos e muitos pés de algodão.Mas veio a Lei Áurea, veio a república, veio a praga que acabou com o algodoal. Agora seu marido ficava ali, sentado na espreguiçadeira, fazendo contas de quanto estaria colhendo se ainda estivesse plantando. A mulher ficava sentada nos batentes da entrada, olhando os rachões da terra até que os olhos ardessem com tanta luz. Aí então, os fechava para sonhar que um dia, um homem vestido de couro viria buscá-la em seu cavalo. E sairiam a galope até um lugar coberto de grama verde, cortado por um riacho perene, onde se amariam rodeados de bois e passarinhos.

Não sei onde começa esta lenda do homem que virá. Talvez ela se perca entre as lanças de Alcácer Kibir, onde mais de um homem desapareceu, além de Dom Sebastião. Só sei que esta espera acaba aqui, comigo. Se algum homem quiser me encontrar, que venha sem que eu o espere. E não me queira levar para lugar nenhum. Pois estou bem onde estou, contente com quem sou. Tenho meus sonhos, claro. Mas o tempo em que vivo não comporta lendas.

Ronaldo Monte
Clube do Conto, 07 de fevereiro de 2009.
Imagens obtidas em:
http://www.terrabrasileira.net/ (vaqueiro)
zig.blogs.sapo.pt (homem com flores)
br.geocities.com (casa com jardim)
redeparede.com.br (mãos dadas)

6 comentários:

Juliêta Barbosa disse...

Ronaldo,
Isso era tudo que eu precisava ouvir para sair do casulo onde me encontro. Você não tem idéia de como me fez bem ler esse texto! Obrigada, por ser – hoje – o meu luzeiro! A borboleta, finalmente, viu a luz do sol e partiu. Livre, leve e solta!

Anônimo disse...

Rona acesse esse saite:
http://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/BT5531001.html

Está lá o tratado de que le falei


Barreto.

PS. Até com um espetáculo daqueles
você consegue fazer um texto desse níveal! Asim não dá!

Dupla inveja.

Um abraço,

Barreto

ELAINE ERIG disse...

QUE MARAVILHA , REALMENTE BELÍSSIMO ESTOU ENCANTADA TOTALMENTE VISUAL DARIA UM FILME MARAVILHOSO!

VaneideDelmiro disse...

Lindo texto, Ronaldo. Sua sensibilidade tem o poder de encantar. Concordo com a colega Elaine, daria, sim, um belo filme.

Humberto Ilha disse...

Gostei muito do seu texto. Abraço do Humberto Ilha.

Anônimo disse...

Belo texto.Os sonhos, ah os sonhos, sem eles que seria de mim? Feliz assim, mas com a cabeça sempre nas nuvens.