01 março 2011

O pastor de enigmas




Algumas orelhas dizem que foram sessenta livros. Outras dizem que foram setenta. Um jornal arriscou dizer que foram mais de oitenta. De qualquer forma, morrer aos setenta anos e deixar praticamente uma biblioteca escrita não é para qualquer um. Eu já vou fazer sessenta e quatro anos e só escrevi uns dez. Nunca vou ser um Moacyr Scliar.
Se me perguntassem qual livro do Scliar eu gostaria de ter escrito, responderia sem a menor dúvida: “A mulher que escreveu a Bíblia”, de 1999. Todas as manhas, todos os recursos, toda a competência de um escritor estão ali, contando a história de uma mulher feia que conquista o poderoso Salomão.
O Scliar não é apenas um bom ficcionista. Colocou seu talento a serviço da saúde pública. Mas ao escrever seus textos científicos, não esqueceu que era um grande escritor. Daí o meu fascínio com a leitura de “Saturno nos trópicos”, de 2003, em que conta como herdamos a melancolia européia e o quanto tentamos disfarçá-la. Lévi-Strauss que o diga.
Os que amamos a palavra, ouvimos três vozes que nos falam do extremo sul: Veríssimo (o pai), Quintana e Scliar. É inútil insistir que estão mortos. Para mim, estão onde sempre estiveram. Em algum lugar na desordem de minhas estantes. Ali, á mão, prontos a me mostrar os mistérios da palavra escrita. Mas só para mostrar esse mistério, nunca a sua decifração. Pois os bons escritores são criadores de enigmas. Todos eles esfinges, loucos para nos empurrar penha abaixo, desesperados por não trazermos a senha. Mas como bom humanista, Scliar sabe do sofrimento de cada um de nós confrontados com os enigmas que nos lança à cara. Por isso permanece junto a nós, nos consolando em nossa incapacidade de tradução.
Morreu Moacyr Scliar, o pastor de enigmas. Mais do que isso, o pastor dos que sucumbem aos enigmas dos livros e do mundo.

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