Algumas orelhas dizem que foram sessenta livros. Outras dizem que foram setenta. Um jornal arriscou dizer que foram mais de oitenta. De qualquer forma, morrer aos setenta anos e deixar praticamente uma biblioteca escrita não é para qualquer um. Eu já vou fazer sessenta e quatro anos e só escrevi uns dez. Nunca vou ser um Moacyr Scliar.
Se me perguntassem qual livro do Scliar eu gostaria de ter escrito, responderia sem a menor dúvida: “A mulher que escreveu a Bíblia”, de 1999. Todas as manhas, todos os recursos, toda a competência de um escritor estão ali, contando a história de uma mulher feia que conquista o poderoso Salomão.
O Scliar não é apenas um bom ficcionista. Colocou seu talento a serviço da saúde pública. Mas ao escrever seus textos científicos, não esqueceu que era um grande escritor. Daí o meu fascínio com a leitura de “Saturno nos trópicos”, de 2003, em que conta como herdamos a melancolia européia e o quanto tentamos disfarçá-la. Lévi-Strauss que o diga.
Os que amamos a palavra, ouvimos três vozes que nos falam do extremo sul: Veríssimo (o pai), Quintana e Scliar. É inútil insistir que estão mortos. Para mim, estão onde sempre estiveram. Em algum lugar na desordem de minhas estantes. Ali, á mão, prontos a me mostrar os mistérios da palavra escrita. Mas só para mostrar esse mistério, nunca a sua decifração. Pois os bons escritores são criadores de enigmas. Todos eles esfinges, loucos para nos empurrar penha abaixo, desesperados por não trazermos a senha. Mas como bom humanista, Scliar sabe do sofrimento de cada um de nós confrontados com os enigmas que nos lança à cara. Por isso permanece junto a nós, nos consolando em nossa incapacidade de tradução.
Morreu Moacyr Scliar, o pastor de enigmas. Mais do que isso, o pastor dos que sucumbem aos enigmas dos livros e do mundo.
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