05 dezembro 2006

O beijo



Não foi intencional. Ele jamais faria isso. Não era homem de ultrapassar os limites, avançar o sinal. Foi o mais puro acaso que fez o canto de sua boca tocar no canto dos lábios dela. O tamanho daquela boca, a embocadura dos lábios, por certo tinham contribuído para o acidente. Foram apresentados na saída do cinema. O amigo a exibiu como um troféu, décadas mais nova do que ele. Avançou a mão para um cumprimento, mas ela adiantou o rosto, a face já ligeiramente virada em sua direção, os olhos obliquamente fixados nos dele. Ele quis limitar o gesto a um leve encontro das faces, mas ela não somente encostou o rosto no seu. Torceu os lábios numa mesura que a deixou estranhamente bonita. Foi aí que aconteceu. Os cantos dos seus lábios se tocaram.
O encontro foi rápido. Não teve beijo de despedida. Ele evitou até o aperto de mão. Quando se viu só, não estava mais só. No canto direito da boca alguma coisa incomodava, como uma mosca. Mesmo que a impressão geral do encontro das faces já tivesse se esvaído, teimava um ponto minimamente molhado, quase uma lembrança de umidade. Quis passar a mão, mas a mão desobedeceu. Tentou passar a língua, se arrependeu. Não sabe bem porque, mas quis manter aquele ponto ali no canto da boca.
Foi dormir sem tomar banho. Nem sequer lavou o rosto. Deitou-se de costas, fora de sua posição habitual. Se deitasse virado para o lado direito, corria o risco de perder para a sempre a marca que a cada momento ia se atenuando, prestes a desaparecer.
O sono demorou. Não queria que chegasse. Se dormisse, poderia apagar para sempre os últimos vestígios daquele quase beijo. Velou até onde pôde o ponto no canto da boca por onde aos poucos foi se infiltrando a mulher da qual nem sabia o nome. Primeiro os lábios, depois o rosto, daí todo o corpo dela deslizou para dentro do seu. Não se lembra de ter dormido. Lembra apenas do corpo pesado, dolorido, inflamado que tentou arrancar da cama de manhã. Não pôde se levantar. O corpo da mulher latejava dentro do seu, como uma infecção.

3 comentários:

Anônimo disse...

Adoro esse texto, é incrível essa descrição da sensação de alguma coisa como uma lembrança molhada.

Márcio S. Sobrinho disse...

"como uma mosca"...
a sensação é justo esta. :)

Paula Theotonio disse...

A capacidade que temos de "invocar" com alguma coisa é incrível. É como o perfume que você sente em seu corpo pelo resto do dia, depois de um abraço com aquela pessoa tão querida...