04 agosto 2006

Os tubarões de Barcelona


Sabendo que não terminaria a longa travessia que fazia com seu filho Jorge entre Barcelona e Buenos Aires, dom Ricardo Aldaya “observava o bando de tubarões que seguiam o navio desde pouco tempo depois da escala em Tenerife”. Não acreditou na explicação dos marinheiros de que era comum aquela vizinhança sinistra nos cruzeiros transoceânicos. Os tubarões se alimentavam da carniça que os barcos iam deixando para trás. “Mas dom Ricardo Aldaya não acreditou. Estava convencido de que aqueles demônios o seguiam”.
Um dia, Jorge acordou e viu o beliche do pai vazio. “Encontrou o roupão abandonado na popa do navio, ainda morno. O rastro do navio se perdia num bosque de brumas escarlate, e o oceano sangrava, reluzente de calma. Pôde ver então que o bando de tubarões não mais os seguia, e que uma dança de barbatanas dorsais se agitava em círculos ao longe.”
Este pedaço de história faz parte de um romance maravilhoso que li há poucos dias, chamado A sombra do vento, do escritor catalão Carlos Ruiz Zafón, que fala de livros e segredos escondidos na cidade de Barcelona. A edição é da Objetiva, de 2004.
Nunca estive em Barcelona, mas o livro de Zafón me deu saudade dela. Por isso, procurei na estante um outro livro lido já há algum tempo que, como era de esperar, não estava na minha estante. Como tudo que desaparece aqui de casa, se não estava no quarto de Iandê, com toda certeza estaria no apartamento de Raíja. Estava. Trata-se de A cidade dos prodígios, de Eduardo Mendoza, editado pela Companhia das Letras, em 1987.
Estava na página 27 do livro quando me deparo com um trecho de carta enviada dos Açores para sua mulher por Joan Bouvilla, numa viajem em direção a Cuba: “A travessia é boa, hoje vimos tubarões; seguem perigosamente o barco em bandos, à espera de que algum passageiro caia n’água; então, devoram-no de um bocado: trituram-no todo com sua tripla fila de dentes; daqueles que conseguem fazer presa e devorar não devolvem nada ao mar.”
Sou acostumado a estas coincidências no meu processo meio demente de leitura. Mas nunca deixo de me espantar com elas. Caminhei um pouco mais no livro de Mendonza até encontrar, na página 35, um trecho que pode muito bem explicar a presença dos tubarões nos mares duvidosos dos romances. Nos idos de 1701, a Catalunha teria tomado o partido da Áustria na guerra da Sucessão. Por isso, foi duramente castigada pela vitoriosa Casa de Bourbon, entronizada na Espanha, sofrendo todos os castigos possíveis ao seu povo, suas cidades e campos. É aqui que entram os tubarões: “O porto de Barcelona foi semeado de escolhos; foram lançados ao mar tubarões trazidos especialmente das Antilhas em cisternas, para que infestassem as águas do Mediterrâneo. Felizmente, este meio lhes foi adverso: os que não morreram por causa do clima ou da ingestão de moluscos emigraram para outras latitudes pelo estreito de Gibraltar, nesse tempo já em poder dos ingleses.”
Agora é só esperar que outro escritor imaginoso venha responsabilizar os tubarões de Barcelona pelos ataques aos surfistas em Pernambuco. Esses escritores são capazes de tudo.

Um comentário:

Anônimo disse...

Prezado Professor:

Sou Carme Izquierdo de Barcelona e professora de espanhol no Rio de Janeiro. Achei muito interessante a historia dos tubarões do porto de Barcelona. Eu nunca tinha ouvido essa historia.

Achei o seu blog per casualidade pesquisando para meu trabalho sobre Barcelona no imaginário literário que vai ser exposto no próximo congresso de hispanista de Rio.

Os dos livros dos que o senhor escreve forma parte de nosso trabalho, alem de outros como o Quixote ou A Igreja de Santa Maria do Mar de Ildefonso Falcones,livro imprescindível para explicar a época medieval da Cidade. Infelizmente ainda não foi publicado no Brasil.

Na verdade, prezado professor, eu estou escrevendo para saber se o senhor seria tão amável de me dizer onde achou essa informação tão valiosa.

Quero pedir desculpa por o meu horrível portunhol

Muito obrigada

Carmen Izquierdo Benítez
Professora Instituto Cervantes
Rio de Janeiro