02 maio 2012

Boa seca



“Seca boa foi a de 79. Ali eu ganhei dinheiro.” Ouvi esta pérola de canalhice da boca de um político que na época era prefeito de uma cidade do sertão da Paraíba. Ele se referia às facilidades de desvio de dinheiro público com a dispensa de licitações e outras falcatruas permitidas pela decretação do estado de calamidade pública nos municípios flagelados. Esta seca durou cinco anos, atingiu 1,4 milhão de km² e matou mais de três milhões de nordestinos, a maioria crianças desnutridas. Seca boa. Muita gente ganhou muito dinheiro.

Tinha aproximadamente dez anos quando me sentei frente a uma reportagem sobre a seca na revista “O Cruzeiro” e cometi o meu primeiro poema. Foi a primeira e última vez que me emocionei com aquelas fotos marrons de gado morto, terra calcinada e famílias de retirantes marchando entre mandacarus. Não demorei a ver que a cada seca as cenas eram as mesmas, as mesmas queixas e os mesmos bordões sob as fotos rotineiras. Com o tempo, as fotografias coloridas das revistas fizeram tudo parecer mais dramático, mas a repetição das cenas cuidou mais uma vez de banalizar o espetáculo em tecnicolor.

Depois de 55 anos, vejo-me ainda bombardeado pelas mesmas cenas com que a tecnologia HDTV tenta me sensibilizar. Mais uma vez, centenas de cidades do sertão decretam estado de calamidade pública, governadores correm com o pires em busca de ajuda federal e a benevolência presidencial libera recursos emergenciais para combater os populares efeitos da estiagem.

Gente, a primeira seca de que se tem notícia aconteceu entre 1580 e 1583. E os primeiros retirantes foram os cinco mil índios que deixaram o sertão em busca de comida. Cerca de 500 mil pessoas, metade da população do semi-árido nordestino, morreram na seca de 1877, a famosa Setentinha.

Se o leitor está se perguntando, como eu, porque ainda não se resolveu o problema de convivência com a estiagem, a resposta deve estar na boca do antigo prefeito paraibano: toda seca é boa. Ganha-se muito dinheiro.

Um comentário:

Angela disse...

um texto contundente. Não consigo compreender como o dinheiro pode assumir proporções tão distantes de sua real, simples e banal utilidade.

Vou morrer com esta tristeza.