30 novembro 2014

Almeidinha - O herói de paletó




Um folhetim burocrático

03 - Almeidinha e o elevador


                   Minha repartição fica no sétimo andar de um edifício no Centro. Eu devia pegar dois ônibus para chegar até lá, mas prefiro pegar um atalho por dentro do bairro até chegar na avenida onde passa o ônibus que me leva direto ao trabalho. Minha senhora vive reclamando que eu devia pegar os dois ônibus, que o dinheiro que economizo na passagem eu gasto com a sola dos sapatos. Que se eu pegasse dois ônibus ia sair mais tarde de casa e ela podia dormir mais meia hora.  Mas neste caso eu não dou ouvidos a ela. Saio de casa com o sol frio e faço a caminhada que o médico me recomendou. É claro que no meio do caminho o sol esquenta e eu transpiro um pouco nas axilas. Às vezes me vem a idéia de tirar o paletó, mas eu ia ficar sem jeito, me sentindo meio nu no meio da rua.
                   O ônibus que eu pego geralmente vem lotado e eu tenho que viajar em pé, o que me faz suar um pouco mais e ainda por cima me amarrota o paletó. O bom é que eu desço a duas quadras do prédio da repartição, não chego assim tão cansado. Não deixo nunca de agradecer a Nossa Senhora quando encontro o elevador funcionando. Pois subir os sete andares naquela escada escura e fedendo a fumaça de incinerador é muito cansativo, embora o Dr. Pacheco diga que faz bem ao coração.
                   Bendito elevador. Quase nunca enguiça. Mas teve um tempo em que as coisas eram muito ruins. O elevador era muito antigo, daqueles com porta interna de sanfona que fazia um barulho incômodo quando abria ou fechava. Estalava, como um monte de ferro velho. Um dia o Dr. Pacheco perdeu a paciência e me pediu para redigir um ofício à Diretoria de Material solicitando a troca do elevador por um modelo mais moderno. Um ano e meio e setenta e três ofícios depois, veio a resposta de que o novo elevador estava sendo licitado. Com pouco mais de seis meses a um ano, a compra estaria finalizada e o elevador seria imediatamente instalado, tão logo fosse feita a licitação. É natural esta demora, pois, como todo mundo sabe, uma licitação é um procedimento administrativo pelo qual um ente público abre a todos os interessados que se sujeitem às condições fixadas no instrumento convocatório, a possibilidade de formularem propostas dentre as quais selecionará e aceitará a mais conveniente para a celebração do contrato. Além disso, ainda se devia esperar pelos serviços de transporte e instalação. Isto leva tempo, muito tempo.  
                   Nesse meio tempo, o velho elevador enguiçou de vez e todo mundo teve que passar a se servir da escada escura e fedorenta. Todo mundo, menos Dr. Pacheco e Dona Marli, que se instalaram numa sala comercial na sobreloja. Não precisa dizer que todos usavam os meus valorosos préstimos para levar os documentos para o Dr. Pacheco assinar. Claro que havia uma certa organização para que não abusassem da minha boa vontade. Descia e subia uma vez às dez horas da manhã, depois levava o expediente acumulado na descida para o almoço. Quando voltava, esperava um pouco que Dona Marli abrisse a porta com umas mechas de cabelo fora do lugar e o sutiã meio desequilibrado e me liberasse para subir com a papelada assinada. Só lá para as quatro da tarde é que descia e subia de novo. Sentia um certo orgulho em ser responsável pelo bom andamento do nosso trabalho, fazendo com que ninguém sentisse falta do elevador. Fiquei até me sentindo um inútil quando, finalmente, o novo elevador começou a funcionar.
                   Só me senti um pouco reconfortado porque o Seu Alfredo voltou ao trabalho. Seu Alfredo, se vocês não sabem, é o nosso ascensorista. Durante todo esse tempo eu tive saudade das conversas que a gente tinha enquanto eu subia e descia no elevador. Como eu sempre fui o primeiro a chegar e o último a sair da repartição, viajava sempre a sós com Seu Alfredo. E a gente tinha uma conversa muito íntima, muito produtiva, nos poucos minutos entre o térreo e o sétimo e vice-versa. A gente nunca perdia o fio da conversa e a cada viagem avançava um pouco mais no assunto. Levei mais de um mês para saber que Seu Alfredo tinha sido deixado pela mulher porque ele era sonâmbulo e se levantava várias vezes de noite para abrir e fechar a porta do quarto, falando com voz educada, mas firme: descendo... subindo...
                   Acho que o Dr. Pacheco foi muito generoso mantendo o Seu Alfredo na função de ascensorista, mesmo o novo elevador sendo automático. Seu Alfredo é quem aperta os botões e continua informando aos passageiros que esperam nos andares, sempre com sua voz educada, mas firme, se o elevador está subindo ou descendo, evitando que algum distraído suba quando queria descer ou vice-versa. Se eu não fosse tão atarefado, passava mais tempo subindo e descendo no elevador de Seu Alfredo. É que está demorando muito para explicar a ele o quanto é difícil pra mim me separar do meu paletó.


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