18 novembro 2014

Almeidinha - o herói de paletó

Um folhetim burocrático


01 – Godofredo, Almeida, Almeidinha

                   Minha senhora se dá ao respeito. Na intimidade, ela me chama pelo nome de batismo: Godofredo. Mas na frente dos outros, ela me chama de Almeida. Quando está com raiva, ela grita Almeida. Basta eu chegar em casa sem o pão, basta eu sair sem deixar o dinheiro do açougue, é matemático. Ela grita Almeida. Ela é de lundum. Tem noite em que manda: Almeida, vá dormir no sofá. Eu nem pergunto por que. Pego o travesseiro e um lençol de solteiro e passo a noite suando na sala. O ventilador fica no quarto com ela. Tem sábado que ela inventa um briga por nada e sai batendo a porta. Nessas horas, nem de Almeida ela me chama.
                   Mas o que eu gosto mesmo é de ser Almeidinha. É como me chamam os colegas da repartição. Colegas, não. Quase irmãos. Tem o Ciço que é contador, tem o Joel, que é escriturário como eu e tem a Dona Marli, secretária do  Dr. Pacheco, nosso chefe. O que gosto deles é que me dão muito valor. Vivem elogiando minha capacidade de compreensão e disposição para prestar qualquer favor, sem medir tempo ou esforço.
                   O Ciço vive cansado, coitado. Se acaba de trabalhar e nunca tem tempo de pagar suas contas. Sei que, se ele pudesse, ele mesmo ia ao banco, à lotérica. Por isso eu nunca me nego quando ele pede e tiro meu tempo de almoço para pagar as contas dele.
                   O Joel, pobrezinho, sofre de dor nas costas e não consegue passar muito tempo sentado no computador. De vez em quando dá uma saidinha para estirar a coluna e me pede para dar conta dos ofícios que ele não consegue digitar. Faço com satisfação, pois sei como é difícil ficar sentado muito tempo com as costas doendo.
                   Dona Marli é a que menos me dá trabalho. Também fica muito difícil pra mim fazer o que ela faz. Lixa as unhas, passa esmalte, passa batom e vive ajeitando o sutiã e arrumando o cabelo. Principalmente quando sai da sala do Dr. Pacheco.
                   O Dr. Pacheco, esse, é uma figura imponente. Entra na repartição por uma porta só dele e passa pelos funcionários com a cabeça levantada, nos olhando por baixo dos olhos. É meio gorducho e tem uma papada denunciadora dos anos que os cabelos pintados querem esconder. O rastro de lavanda que deixa entre os birôs demora a desaparecer. Dona Marli o recebe de pé, curvada como uma gueixa, segurando a maçaneta da porta já aberta e entra na sala logo atrás do chefe. Sai meia hora depois com umas mechas de cabelo fora do lugar e o sutiã meio desequilibrado. Pra não dizer que não me pede nada, pede que eu lhe traga um copo d’água. Não é pra menos, coitada, tão afogueada que sai da sala do Dr. Pacheco.
                   Quem chega na repartição estranha ao me ver sentado num birô no fundo da sala, batucando numa velha Olivetti, daquelas grandes, de cilindro longo. Já estou cansado de ter que explicar porque eu não tenho computador. Eu tinha, até o dia em que Dr. Pacheco me chamou na sua sala e apelou para o meu espírito desprendido e altruísta. Sua filha Suellen precisava fazer um trabalho para a escola e tinha que pesquisar na internet. Acontece que o computador dela deu pau, ele disse, e a pobrezinha estava inconsolável, com medo de ser reprovada. O trabalho era para amanhã. Depois de amanhã, sem falta, Dr. Pacheco traria o computador de volta. Tinha certeza de que o bom e velho Almeidinha não faria questão de passar um dia ou dois usando a Olivetti velha de guerra que nunca deu pau nem deixou cair o sistema.
                   Acontece que já faz dois meses que Dr. Pacheco levou o meu computador. A primeira e única vez que lembrei a ele, me olhou com um desdém esmagador e me indicou com o queixo a porta da sala por onde eu saí apressado e morto de vergonha. O pior de tudo é que eu sabia que ele estava infringindo o artigo 100 do Código Civil. Lá está escrito que os bens públicos são inalienáveis enquanto conservarem a sua qualificação. E o meu computador ainda estava muito bem qualificado. O Dr. Pacheco não podia ter esquecido o artigo 100 do Código Civil. 

                   Esse é o único problema que eu tenho na repartição. Pra se vingar do meu desaforo, Dr. Pacheco me dá muito mais trabalho do que ao Joel. E o Joel, coitado, com aquela dor nas costas, sempre me deixa alguma coisa para fazer no lugar dele. Uma vez pedi para usar o computador dele, mas ele ponderou que um PC era um objeto de uso pessoal, como o próprio nome sugeria: personal computer. E se eu danificasse o equipamento, como ele ia se explicar com o Dr. Pacheco? Melhor não, Almeidinha. Para o seu próprio bem, melhor não.

3 comentários:

Anônimo disse...

Genial, Doc. Tem certeza de que esse Almeidinha não sou - ou fui - eu?

W. J. Solha

Guy Joseph disse...

Bacana, Rona! Isso me inspira um curta metragem. Abraços

Guy Joseph disse...

Genial, Rona! Sempre tive essa visão do amanuense público, sem prazeres, sem sofrimento... Isso inspira um curta metragem! Abraços