24 agosto 2010

Sob os olhos do fantasma




Há algum tempo, passei um fim de semana com o fantasma de Barreto em minha cola. Fui para minha casa em Cabedelo com a intenção de fazer a revisão do seu último livro de contos, Os colecionadores. Fátima, a mulher dele, tinha pedido a mim e a Valéria Rezende para editar o livro que ele tinha deixado já com índice e ficha catalográfica prontos. Junto com Valéria, tive o privilégio de fazer a leitura crítica de seus últimos livros. Era um privilégio que me divertia muito, pois lia antegozando as brigas homéricas que teríamos na hora de devolver os originais. Cada frase, cada palavra, cada vírgula era disputada a tapa, com argumentos nem sempre racionais e um jargão pouco imaginável entre cidadãos dados às lides das letras.
Desta vez, não foi diferente. E muito pior. O fantasma não esperou que eu terminasse a revisão. Chegava a qualquer momento e ficava espiando pelas minhas costas. Sentia sua apreensão toda vez que eu pegava o lápis para fazer uma anotação. Quando era um erro simples de digitação, o fantasma relaxava. Mas quando eu punha em dúvida uma construção mais redundante ou discordava de uma concordância, era sensível a sua muda irritação.
Por outro lado, sentia a vaidade do fantasma quando eu sublinhava uma construção de mestre: “Era uma sexta-feira e ele trazia na cara todos os expedientes da semana”. Fui eu que fiz, quase o ouvia dizer. Na passagem de “o vento varrendo a poeira do abandono”, senti um leve farfalhar nas folhas de um vaso próximo à rede onde eu lia. Acho que ele fez de propósito, para dizer que ainda sabia reconhecer a minha inveja. E fez cair uma folha quando viu que eu estava na parte em que a seca vinha “matando plantas, secando o capim, bebendo todo o molhado que havia”.
Quando terminei a leitura e sorri satisfeito pelo presente que havia recebido, senti que ele foi embora. Mas antes de sair, balançou com força o sino japonês pendurado no canto do terraço. Como quem diz, eu vou, mas volto em qualquer agosto, quando o Clube do Conto se reunir para lançar meu último livro de contos. Vai ser neste fim de semana. Ele vai estar lá.

Um comentário:

Gustavo Limeira disse...

que beleza, hein? barreto vive nas linhas que nos presenteou. outro dia terminei de ler 'o concertista e a concertina', que é de uma ternura que não cabe em comentário de blog. mal posso esperar por este que, sem dúvida, não vai ficar pra trás.