25 maio 2009

Delicado

Se me pedissem uma palavra para definir Barreto, responderia sem hesitar: delicadeza. Esta era uma qualidade que vinha antes de todas as outras. Ele podia ser crítico, irônico, até mesmo gozador. Mas tudo isto revestido com a embalagem da delicadeza.
Se o leitor quiser saber exatamente do que estou falando, leia um livro de Barreto. Esses que ele assina como Geraldo Maciel. Pegue um conto, que seja. Logo se dará conta de que aquilo é fruto de um delicado trabalho de ouriversaria, ouro e prata engastados de palavras preciosas, mas tudo muito bem disfarçado em simplicidade e clareza. Tente imitar, como eu tentei, um mínimo parágrafo e saberá como é difícil e exaustivo o resultado.
Até para morrer, Barreto foi delicado. Nada de períodos longos de internamento, promessas ilusórias de melhora. Foi ao encontro do Clube do Conto, no sábado, sem dar a menor bandeira. Acordou no outro dia bem disposto e saiu para cuidar da vida. Foi ali, morreu e pronto. Não obrigou ninguém a cancelar compromissos, adiar ocupações, pois escolheu para partir numa manhã chuvosa de domingo, em que não dava praia. Com isso, não estragou o programa de ninguém.
Foi uma pena Barreto ter faltado ao seu velório. Ia ficar feliz com a turma que se reuniu, incrédula, para ter certeza de que a notícia não era brincadeira de mau gosto. Tinha muita gente boa, gente querida. Mas faltava alguém imprescindível. Aquele que saberia dizer as palavras exatas para a ocasião. Nos falaria de perda, de dor e de ausência. Mas falaria muito delicadamente.







Inveja

Tenho inveja de quem escreve melhor do que eu. Vejam, por exemplo, isto que Geraldo Maciel escreveu: “Uma cova comum tinha seus nove palmos de comprimento, quatro de largura e os sagrados sete palmos de fundura. O que passasse disto, ou seja, sendo o finado muito gordo ou muito alto, requeria uma taxa extra, pois, mesmo sendo a morte uma coisa meio sagrada, cavar covas cansa muito e deixa o corpo tão quebrado quanto trabalhar na agricultura ou carregar fardos às costas”. É um trecho do conto “O coveiro”, que está no seu último livro, O concertista e a concertina. Não é de dar inveja em qualquer um?Para quem não sabe, Geraldo Maciel é o mesmo camarada que muita gente conhece como Barreto. No começo se faz uma certa confusão, mas a gente termina se acostumando. Ele tem outra doença, além de ser contista e ter dois nomes: teima em ser dono de uma editora, a Manufatura, por onde editou o seu livro. Não é de hoje que tenho inveja do texto de Geraldo Maciel. É desde o seu primeiro livro de contos, Aquelas criaturas tão estranhas, em que ele gasta quase uma página com um tiro de clavinote, descrevendo o trajeto do material expelido desde a boca da arma até se alojar nas vísceras da vítima. Fui tentar imitar a técnica descrevendo um soco se aproximando em câmara lenta da cara de um sujeito. Não consegui passar das cinco linhas. Quem quiser roer de inveja como eu, leia qualquer coisa de Geraldo Maciel. Mas leia de preferência este novo livro. São textos maduros, de boa carpintaria. A história que dá título ao livro dá vontade de chorar. Mas emoção mesmo eu senti com a sina do Boca, cantor de corpo disforme mas com uma voz capaz de criar amores e reacender velhas paixões. É livro de se ler de um fôlego só e ficar com gosto de quero mais. Tenho muita inveja de quem escreve melhor do que eu. De Geraldo Maciel, ou de Barreto, não importa, eu tenho é raiva.



5 comentários:

Anônimo disse...

Sou casada com o irmão de Fátima que acompanhou tudo de perto naquele domingo tão triste, e sei que mesmo ainda no momento onde paira muita dor e saudades, os filhos de Geraldo ficam orgulhosos dos comentários dos amigos que fortalece a alma.
Sua obra é singular,peculiar e permanecerá entre nós.
Agradeço a você Ronaldo Monte por suas palavras sábias.
Regina Meireles ( Cunhada de Fátima)

Carla Mary S. Oliveira disse...

Barreto era daquelas pessoas especiais, que fazem diferença no mundo. Nossas disputas e trocas gastronômicas (ele era um chef soberbo também) farão falta, assim como os almoços de domingo ou jantares de sexta em sua casa tão acolhedora, com Fátima a cuidar de todos os detalhes e ele dos acepipes e dos bons vinhos, Adalberto e Márcia nos acompanhando nos mini festins de Babette. Não foi só a literatura da PB que ficou mais pobre: todos nós que partilhávamos de sua convivência ficamos verdadeiramente órfãos de um grande amigo. O seu bom humor constante e o jeito meio maroto de encarar a vida são as boas lembranças que ficam, e também seus escritos, de um refinamento sem par, de uma riquíssima prosa de inspiração sertaneja e, por isso mesmo, totalmente universal. Reduzi-lo a escritor "paraibano", como alguém preso ao regionalismo, não condiz com a qualidade de sua obra. O coração dele parou neste domingo, de repente, sem dar aviso nem tempo pra despedidas. Recebi a notícia me preparando pra fazer pro meu almoço uma receita criada e aprimorada por ele: fígado de frango acebolado ao curry. Talvez tenha sido melhor ele ter partido assim, pois guardamos na lembrança sua imagem em plenitude, cheio de energia e ideias pululando a cada instante.
Carpe Diem, meu querido!

Unknown disse...

Eu sou Lila, irmã de Fatíma. Em seu nome e em nome de toda nossa família, agradeço os sinceros e carinhosos comentários aqui postados. Barreto deixará saudades eternas mas nunca morrerá, pois sua memória continuará viva através dos seus livros e no coração dos que o amam.
A continuidade da editora Manufatura também será uma forma de homenageá-lo e mantê-lo vivo entre nós.

Angela disse...

Puxa, isto me emocionou! Fiquei com vontade de ler o Barreto e achando que a melhor morte é a que escolheu, ao menos imagino que seja.

Anônimo disse...

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