18 janeiro 2015

10 - Almeidinha - o herói de paletó

Um folhetim burocrático


10 - Almeidinha, o mendigo


                Era mais de oito horas e a porta da igreja estava fechada. Estranhei, pois, depois da missa das sete, Padre Guido costuma ficar por ali, na esperança de que alguém apareça para uma confissão, ou mesmo uma conversa sem muito compromisso. Ele deve ter dado uma saidinha e volta já. Vou me sentar aqui neste degrau, me escorar aqui nesta parede e esperar até que ele volte.

          O sol começou a esquentar e eu comecei a suar. O casaco me apertava e as fibras das mangas me davam uma coceira que só aumentava minha aflição. Olhei para os lados, não vi ninguém e tomei uma decisão drástica: tirei o casaco.

             Com o passar da manhã, o sol deitou uma sombra no lugar em que me sentei. Meio sem saber o que fazia, fiz uma trouxa com o casaco, ajeitei entre a cabeça e a parede e deixei o sono mandar em mim, como todo mundo.

          No mesmo instante me vi sentado em meu birô, batendo na máquina, mas não é nenhum ofício, petição, ou relatório. É uma carta, na verdade uma poesia que eu escrevo num papel cor de rosa, e desse papel sai um cheiro que eu conheço. De repente, entra uma mosca gigante pela porta da repartição voando em minha direção e fica dando voltas em torno da minha cabeça. Quando ela passa pela frente do meu nariz, aumenta mais o perfume que antes eu pensei que saía da folha do papel. Depois de me deixar tonto com suas voltas e seu perfume, a grande mosca pousa no meu ombro esquerdo. Entro em pânico, pois tenho medo que ela saia dali e voe para fora da sala. É quando vejo o Dr. Pacheco correr em minha direção gritando Seu Almeidinha, isso é coisa que se faça na frente dos seus colegas? E bate com toda força no meu ombro, espantando a mosca e me causando uma pontada de dor.

                As pontadas se repetiam, mas agora não vinham mais das mãos do Dr. Pacheco. Sabia disto, porque já estava acordado. Só quando abri os olhos pude ver a ponta de uma vara curta que me cutucava o ombro. Na outra ponta da vara, uma mão engelhada anunciava um braço magro que levava a um rosto velho de barbas brancas e uns olhos irados que antecipavam o grito: vá pedir esmola em outro canto que este ponto aqui é meu. Custei um pouco a entender, mas tudo ficou claro quando vi algumas moedas e umas poucas cédulas espalhadas em torno de mim.

               Meu Deus, até que ponto eu cheguei. Se estivesse de paletó, garanto que isto não tinha acontecido. Juntei todo o dinheiro do chão, e entreguei ao seu verdadeiro dono, repetindo um pedido de desculpas. Ele me olhava assustado, sem entender muito bem o que se passava. Vi que a porta da igreja estava aberta, mas não foi para lá que eu corri. Desci de passo apressado a escadaria e saí sem rumo pelas ruas ensolaradas do bairro.  
    
       Aos poucos minhas passadas voltavam ao normal. Sempre andei apressado, mas agora ia devagar pela calçada na direção oposta à da minha casa. Senti uma agonia, uma espécie de vergonha por estar perambulando por ali.  Já tinham me confundido com um mendigo. Agora poderiam pensar que eu fosse um vagabundo. Aos poucos, porém, tive que me conformar com a situação. Estava vagabundando, sim. Não tinha ido trabalhar. E estava mendigando, sim. Esperava que alguém me desse a esmola de um perfume. Divagava assim, ao Deus dará, quando, súbito, me dei conta que, na pressa, tinha deixado o casaco nos degraus da igreja. Entrei em pânico e estendi a mão para o primeiro homem que passava: um paletó, pelo amor de Deus.   

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