25 outubro 2008

Cila


Caminhava na praia entre o mar e a falésia quando avistei sobre as pedras um vulto que me pareceu de uma mulher. Enquanto andava em sua direção, configurava-se o corpo acinzentado de uma morta, fendido pelo sal e pelo sol. A boca meio aberta calava angústias. A cabeça pendida denunciava um longo tempo de agonia. Cheguei mais perto e mostrou-se a cauda ressequida de sereia. O ventre alto tinha marcas de coisas que antes pendiam dali.
Próximo daquela criatura que o tempo me trouxera, pude entender o que queria de mim: que contasse a sua história. Que a salvasse do esquecimento e da tortura a que estava condenada. A cada vez que o mar subia, à medida em que as águas molhavam suas carnes, sua memória despertava aos poucos, revelando traços, formando quadros, ligando tempos, mostrando cenas. Mas quando alguma história parecia se formar, já era tempo de baixar as águas. E com o líquido se esvaía também a possibilidade das lembranças. Seca e esquecida ficava ao pé da falésia até que novamente o mar subisse. Então eram outros os traços, os quadros, os tempos e as cenas. Uma história outra se insinuava. Mas antes de qualquer esboço de sentido, a maré novamente vazava.
Adivinhei seu nome: Sila. Busquei os antigos que narraram seu mito. Assumi o fardo de contar seus infortúnios. Até onde permitir o engenho, tecerei uma memória para Sila. Para que ela enfim possa livrar-se do esquecimento e eu possa enfim livrar-me do peso da sua presença.

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