18 setembro 2007

Virar Moça




Uma vez, uma mulher do riacho perguntou meio debochada: tu já virou moça, menina? Não sabia o que era virar moça. Sabia naquela hora que não podia ser uma coisa boa, pois todas as mulheres pararam de areiar as panelas para rir de minha cara encabulada.
Virar moça, virar moça... Minha mãe devia saber o que era, pois me contava histórias de homem que vira lobisomem, de mulher de padre que vira mula-sem-cabeça, de mulher corcunda que vira serpente quando fica velha. Quando cheguei em casa, fui direto pra cozinha e disse: mãe, uma moça do riacho perguntou se eu já tinha virado moça. Eu já virei? Ainda não, respondeu ela. Quando virar, você mesma vai saber. Agora vai cuidar de tuas coisas que eu tenho mais o que fazer.
Virar moça... O nome da minha vó é Dona Mocinha. Mas não acho que a mulher do riacho perguntou quando é que eu vou ficar velha. Ela perguntou se eu já tinha virado moça. Moça, que eu saiba, é uma mulher nova que ainda não chega a ser mulher. As moças que eu conheço têm mais corpo do que eu, têm as pernas mais grossas, a cintura mais fina e têm os peitos grandes. Os meus ainda não nasceram. A não ser que eu chame de peito esses carocinhos que estão aparecendo. Um dia eu vinha do riacho com o vestido molhado colado no corpo e um homem safado que bebia cachaça no balcão da venda gritou: olha as pitombinhas dela. Daqui a pouco ela vira mulher. Aí é que eu fiquei embaraçada. A mulher do riacho diz que vou virar moça. O homem da venda diz que vou virar mulher. Alguma coisa, na certa, estou virando. Pois este corpo de menina parece que não está dando mais em mim.
Ai esse corpo que não se aquieta. Esse formigamento nas pernas, essa agonia nas juntas, essa vontade de chorar não sei por que. Ai essa vontade de gritar, de cantar, de ficar muda pelos cantos. Ai esse calor que não passa, esse suor leitoso nessa cama que ficou pequena pra meu corpo. Ai essa coisa molhada e peguenta entre minhas pernas. Meu Deus, eu me cortei? Alguma coisa se rasgou dentro de mim? Que sangue é esse que sai do meio de minhas coxas? Mãe, me acuda, me acuda minha mãe, que eu estou sangrando.
A mãe chegou, me entregou uma toalhinha e disse sem olhar na minha cara: bota isso entre as pernas. Não tome banho frio, não faça trabalho pesado, não fique muito no sol, não passe nem perto de um pé de limão. Agora você virou mulher, já pode ter filho.
Então, o homem da venda ganhou. Minha mãe disse que eu virei mulher. Mas eu queria ter virado moça. Queria ter peito grande, duro. Queria ter coxa grossa, cintura fina. Queria ir no cinema, namorar, dançar bolero. Mulher, eu não queria ser não. Mulher é feia, tem peito mole de tanto dar de mamar aos filhos.Não tem cintura de tanto que pariu. Mulher não sai da cozinha, não se penteia, não dá passeio. Mulher é uma coisa triste. Eu não. Eu quero ser moça.
Do romance Memória do Fogo. Editora Objetiva, 2006.

2 comentários:

Anônimo disse...

Muito bom, Ronaldo. Aliás, belíssimo. Daqui te mando um beijo de moça.
Dôra Limeira

Anônimo disse...

legal