Ela morreu e não fez meu rosbife. Mas não foi por má vontade. Foi falta de tempo. Pois fazer um rosbife, para ela, demandava muito tempo. Primeiro, era preciso ir de véspera para o açougue escolher uma boa peça de filé. Limpar a carne era um trabalho de joalheria. Não podia ficar um fio de nervo, uma nesga de gordura. Já perto do almoço, às vezes do jantar, ela exercia sua tirânica vontade sobre toda a cozinha. Tudo devia estar à mão. Todos os temperos, todos os legumes, o azeite, o vinho e certos segredos sovinamente guardados. Panela aquecida, era o momento da mágica: a peça rolava sobre o azeite fervente no tempo exato para criar uma crosta dourada e revelar, ao fio da faca, o interior macio e avermelhado.
Na última vez que ela veio em minha casa, não toquei no assunto do rosbife. Sua saúde estava abalada e eu sabia que, se pedisse, ela tirava forças das entranhas e fazia o prato pra mim. Mas não valeria a pena. Não queria que o meu prazer custasse o seu sacrifício.
Daí que ela morreu. Agora, se eu quiser rosbife, que o faça. E é o que vou fazer. Qualquer dia desses crio coragem e vou no açougue. É provável que ela também vá, pois nunca confiou na minha capacidade de escolha no que tange às carnes. É só deixar que o seu espírito implicante guie minhas mãos revolvendo, apertando e afundando a unha do polegar em todas as peças até achar aquela que prometa a crosta mais crocante, o interior mais macio. Depois vai ser fácil seguir suas ordens estritas e deixar que a mágica se faça mais uma vez.
Cada um que se vai, mais do que uma imagem, deixa um cheiro na nossa memória. Meu pai me deixou o cheiro de jenipapo misturado com o suor do seu corpo. De minha mãe ficou o perfume do óleo que usava no cabelo negro e espesso. Cada um que se foi, deixou um cheiro. O cheiro que Zita deixou foi o de rosbife incensando a cozinha.
2 comentários:
bela memória. Gostei muito de sua entrega à guia de Zita, que seja em breve, enquanto ela não se distrair com novos quitutes.
Tás escrevendo bunitin, hein Zé ronaldo?
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