18 maio 2008

Meia hora


Todo mundo tem medo de alguma coisa. André tinha medo de meia hora. Seu analista chegou a interpretar que ele temia perder a virilidade. Por isso lhe dava pavor o ponteiro dos minutos totalmente voltado para baixo do mostrador. Erro freudiano. André também tinha medo da meia hora em relógio digital.
A coisa era tão séria que, ao ver o ponteiro se aproximar do tempo fatal, ele tirava o relógio do pulso e ia se esconder em um lugar seguro. Só voltava quando já fosse qualquer hora e trinta e poucos minutos.
Não sabia muito bem o que poderia lhe acontecer de meia em meia hora. Mas a coisa era automática. Uma ponta de angústia lhe tomava o peito e ele já sabia. Nem precisava olhar o relógio. Prendia a respiração, fechava os olhos, controlava o tremor das pernas para depois ver tudo ir embora junto com o ponteiro em direção ao trigésimo sexto minuto.
Poeta famoso no quarteirão onde mora, André costumava ser reconhecido pelas meninas da vizinhança como aquele rapaz delicado que fazia versos de amor muito bonitos. Foi por isso que Marcela sentou junto dele na sorveteria e pediu: faz uma poesia pra mim. Olha, são quatro horas. Daqui a meia hora eu volto pra buscar.
O problema não era o prazo, pois André vivia treinando umas rimas para ocasiões extraordinárias como essa. O problema era a hora. Pegou o guardanapo, traçou as catorze linhas do soneto, mexeu um pouco para disfarçar o plágio, ficou uma beleza. Ainda admirava a obra quando começou a sentir o aperto no peito. Marcela não podia encontrá-lo assim, tremendo, resfolegando, suando as mãos. Correu para o banheiro.
Quando voltou, Marcela já saía pela porta da sorveteria. O relógio marcava quatro e trinta e cinco.
Clube do Conto da Paraíba, 17.08.2008
Imagem obtida em brandusblog.blogspot.com

3 comentários:

Camilla Tebet disse...

Sério, cada um com seus medos, um da meia hora, outro da hora inteira,outro do dia todo e outros assim, tão grande, com medo de viver a vida, cheias de meias e horas inteiras. É de meia em meia que se faz a vida.. e que se for vivida com medo, se perde, é engolida por verdades e mentiras que não tem horas, e nem medos.
Camilla Tebet
www.essepapo.nafoto.net

Anônimo disse...

Ronaldo, li uns três contos seus apenas, mas o suficiente para gostar. Vou procurar teu livro. Bj

Only feelings disse...

Inquietante, só quem já passou por algum medo desse tipo sabe o que é se sentir assim, ainda bem que hoje existem métodos para amenizar.
Menos os relógio claro.
Boa semana!