Eu já disse uma vez que meu nome é Ronaldo Monte Limeira. Eu e Dôra somos irmãos na dor e exercemos o ofício perverso de transformar essa dor em beleza.
Eu e Dôra brigamos muito durante o tempo em que convivemos. Mas vivemos sempre momentos fraternos em que pude expressar o meu amor e a minha admiração pelo seu trabalho. São alguns desses momentos que quero lembrar aqui.
16 dezembro 2013
Ela guarda a dor em seu nome, mas a dor não demora em sua alma. Ela reparte suas dores com quem as merece: todos nós que sofremos e fazemos sofrer. Ela é Dôra Limeira, a que dói e dá frutos. “Cancioneiro dos loucos” é o seu mais novo fruto. E dói.
O que dói em Dôra são as dores das putas, das bichas, das mal-amadas, das desamadas. As dores das velhas, das loucas, das aleijadas. As dores dos homens que perdem, que batem, que cheiram mal.
“Cancioneiro dos loucos” foi publicado pela Idéia, de João Pessoa, com recursos do FIC da Secretaria de Cultura do Governo da Paraíba. Divide-se em duas partes. “Cantigas lacrimosas” concentra contos inspirados em velhas canções de amor e desespero. “Lamentos de porta em porta” é o que o nome diz: cada porta de casa guarda um lamento por um filho morto, um sonho desfeito, uma mutilação...
Quem conhece os livros anteriores de Dôra já sabe o que esperar deste “Cancioneiro”. Contos curtos, quase sem enredo, instantâneos das vidas comuns que precisam de pouco para viver suas tragédias. O mundo em que vivem tudo provê para que sofram pelo simples motivo de estarem vivos.
Os leitores de Dôra também não se espantarão com o seu estoque de escatologias. Seus personagens sangram, vomitam, se mijam, se cagam e fedem todos os fedores que o muito sol e a pouca água podem fazer feder.
O leitor atravessa o livro com um embrulho no estômago e respira aliviado quando vira a última página. Então, pergunta-se ao leitor: porque não largou o livro no meio? Porque suportou até o fim esta ânsia de vômito? A resposta é simples: é impossível deixar de lado aquilo que nos pertence. O leitor se deixa seduzir pelo texto de Dôra porque ele lembra que somos feitos dessa matéria. Se somos diferentes em nossa aparência externa, ninguém conseguiria identificar as nossas tripas se as vissem expostas no açougueiro. Somos também iguais nas sombras que engendram nossas almas. Um pouco mais, um pouco menos, todos cheiramos mal. São testemunhas disto nossos sonhos, que nunca acabam bem e sempre nos geram angústias.
Foi para nos lembrar disto mais uma vez que Dôra escreveu seu “Cancioneiro dos loucos”. Nas mãos dos leitores, portanto, um pouco mais de Dôra, um pouco mais de dor.
Ronaldo Monte.
14 abril 2010
Dôra, a comendadôra
O filho de um fazendeiro foi eleito governador do Lions em sua cidade. O velho pai pergunta ansioso:- Quer dizer que a gente agora pode prender os inimigos?
Pode não, meu pai.
- Mas mandar soltar os amigos a gente pode, não pode?
- Pode também não, meu pai.
- Então, pra que diabo serve ser governador?
A minha amiga Dôra Limeira acaba de receber, da Câmara Municipal de João Pessoa, a Comenda Cultural Ariano Suassuna. É a minha vez, então, de perguntar: pra que serve ser Comendadora?
Em primeiro lugar, serve pra enfeitar. Dôra ficou imponente com aquela medalha enorme enfeitando seu colo. Parecia uma Super-Filha-de-Maria.
Em segundo lugar, serve para deixar vaidosos todos que gravitam em torno dela. Irmãos, filhas, netos, futuro bisneto e a montanha de amigos, todos nos sentimos agraciados na pessoa grandiosa de Dôra Limeira.
Em terceiro lugar, serve para lembrar a nós todos que sensibilidade, garra e talento não tem idade nem escolhe gênero. Dôra é um exemplo vivo, vivíssimo, do que pode uma mulher lançada no mundo para nele deixar sua marca.
Dôra foi a última das meninas Limeira que conheci. Primeiro conheci Nara e Dea. Depois, vieram Ruth e Raquel. Por fim, ganhei este presente da vida: o direito de brigar com Dôra, frente-a-frente ou pelo telefone, todas as vezes em que falo com ela. Porque com Dôra, não tem refresco. Você tem que ser claro e verdadeiro. Assim como ela é clara e verdadeira. Basta ler qualquer um dos seus livros de contos para saber do que estou falando.
Eis, enfim, para que serve a Comenda Cultural Ariano Suassuna que Dôra recebeu. Para reconhecer que vale a pena viver com intensidade e se doar aos outros e à sua cidade. Para mostrar que existem pessoas que dignificam a comenda, mais do que são engrandecidos por ela.
31 outubro 2009
Tem gente que sai para se distrair, outros vão às compras ou ao trabalho. Dôra sai para ouvir a rua gemer. E sabe o que Dôra faz com esses gemidos? Escreve livros com eles. E não é somente o novo livro de Dôra que guarda os gemidos do mundo. Desde “Arquitetura de um abandono”, de 2003, passando por “Preces e orgarmos dos desvalidos”, de 2005, até “O beijo de Deus”, de 2007, Dôra não faz outra coisa além de nos contar do sofrimento que vê e escuta pelas ruas.
Mas repare que Dôra não fala de gritos, uivos ou impropérios. Ela se faz portadora do sofrimento sofrido em surdina, nos becos, nos cômodos apertados das casas de vila, nos banheiros imundos, na solidão das noites suarenta.
“Os gemidos da rua”, o mais recente livro de contos de Dôra Limeira, tem uma catinga azeda das valetas por onde escorre a podridão dos detritos humanos. Cada personagem de Dôra geme como a quem se espreme um carnegão. Sem escândalos, pois não se espera que a mão pesada alivie a força do aperto. Geme-se apenas, com a resignação de quem sabe que a dor vai piorar.
Dôra dividiu os 59 contos do seu livro em três partes: Transgressão, Desvio e Imtimidade. Não consegui adivinhar o critério que ela usou para tal divisão. Peguntem a ela. Pois, para mim, em qualquer parte em que se abra o livro, encontrar-se-á em cada personagem as qualidades da transgressão, do desvio e da intimidade. Isto porque, no meu fraco entender, estas são qualidades facilmente visíveis na própria Dôra.
Dôra cultiva a idossincrasia de usar recorrentemente em seus contos o verbo “adentrar” nos mais diversos modos, tempos e pessoas. Em quase todos os seus contos o verbo cabuloso está lá, às vezes mais de uma vez no mesmo conto. Um psicanalista apressado diria que o verbo adentrar teria uma significação fálica, revelando um desejo de agressão que teria como suporte a pulsão de morte em atividade nos porões do psiquismo dôriano. Limitado ao meu humilde papel de apresentador do livro, revelo apenas minha suspeita de que Dôra usa “adentrar” para se vingar de alguém que um dia disse que o tal verbo soava inadequado na boca de uma personagem que vivia num lugar sujo e pobre. Acontece que o tal lugar era calcado no espaço em que a própria Dôra tinha vivido sua infância. E ela, Dôra, adentrava, sim, quando vivia ali.
Convido-vos, pois, a adentrar ao livro de Dôra Limeira. Antes, porém, avisem aos familiares e amigos mais próximos que não estranhem qualquer mudança no seu modo de falar ou de andar pelas ruas. Seguramente, vocês não serão os mesmos quando saírem, gemendo, da leitura de “Os gemidos da rua”.
João Pessoa, 30 de outubro de 2009
Ronaldo Monte.
08 maio 2008
Não sei o que Dôra Limeira estava fazendo em maio de 68, ou antes e depois dele. Sei que ela tem o hábito de usar a bolsa com a alça cruzada no peito, sinal de que ela já levou muita carreira da polícia. Agora, eu sei bem o que Dôra estava fazendo no fim da tarde do dia quatro de maio de 2008. Estava participando da Marcha da Democracia, junto com a filha e o namorado desta. Quero só esclarecer que esta marcha foi organizada como protesto à proibição pela justiça de uma marcha anterior a favor da legalização da maconha. Vamos deixar a própria Dôra dizer o que viu, do alto dos seus setenta anos:
“Havia muitos jovens, muitas cores, sorrisos, brincadeiras e palavras de ordem. Era muita a energia que ali estava canalizada. Portavam e exibiam toscos cartazes em cartolinas, com mensagens escritas com pincel atômico. O que queriam aqueles jovens assim irmanados naquele momento, naquele espaço? O que diziam aqueles cartazes e faixas rústicas, algumas, podia-se ver, confeccionadas em casa? (...) Queriam eles que fossem respeitadas as suas opiniões, seu direito de ir e vir, queriam falar, dizer. Queriam sorrir, jogar fora mordaças, bradar por liberdade de manifestação.
“(...) No entanto, em dado momento, percebi um tumulto se formando em torno do carro de som. O que seria? Policiais de trânsito e policiais militares anunciaram que o carro não podia prosseguir, alegavam irregularidades burocráticas.
“Aquilo foi mesmo que jogar água fria na fervura. Mas a turma acatou, mesmo que a contragosto, fazer o quê?. A turma era gente do bem. Fariam a festa ali mesmo, em volta do carro, os microfones ligados, a música tocando, a multidão dançando no meio da rua. Não haveria a caminhada, mas apenas um protesto. Gentes sentavam no asfalto, encenavam mordaças, alguns iniciavam coros dizendo abaixo a repressão, democracia sim. Mas as autoridades só queriam truculências, tumultos. Policiais desligaram o som do carro, repuxaram fios, danificaram a instalação e fizeram um cinturão em torno do carro de som, como quem diz aqui ninguém encosta mais. Exacerbaram-se os jovens, até então muito calmos. Os policiais disseram ‘vamos levar o carro’. Os jovens disseram que não. Um rapaz se deitou na frente do carro para impedir, os policiais arrastaram o corpo do rapaz para que saísse da frente à força. Os policiais extrapolaram em suas posturas e levaram o carro embora. Vi quando os policiais espancaram um moço. (...) Ouvi impropérios, gritos de ‘abaixo a repressão’, insultos de lado a lado.
“De repente, que horror. Tropa de cavalaria invadiu a rua, os cavalos se postaram em posição de atacar. A turma se irmanou (...). O hino nacional avançou nas vozes afinadas dos manifestantes. Os cavalos ameaçaram pisotear todos. Vi repentinamente quando os animais avançaram na multidão, bombas de efeito moral explodiram. Meninos, rapazes e moças, senhores e senhoras, anciãs e anciãos correram atabalhoados para escapar das patas dos animais. Entrei em pânico, todos entraram em pânico. Algumas pessoas tentaram se proteger entrando nos bares, os cavalos entraram também nos bares, uma multidão correu para a areia da praia, tentando se proteger, os cavalos invadiram a areia galopando atrás da multidão. Eu não via mais nada, sabia apenas que precisava correr muito na areia. Finalmente, senti braços protetores em meus ombros e ouvi alguém me dizendo palavras de conforto. Era minha filha e o namorado dela falando comigo. Alguns rapazes desconhecidos também me cercaram em gestos de proteção.
Dôra está aí para nos lembrar que ainda existe maio. Que a chama que se alastrou pelas ruas do mundo em 68 ainda não se extinguiu. Ela ainda arde nos corações de pessoas como Dôra, prontas para ir às ruas com a alça da bolsa cruzada no peito, dispostas ao que der e vier.