30 agosto 2006

Coração perdido



Era mais ou menos por ali, numa dessas árvores do bosque por trás da gaiola das araras. Eu adoro araras, disse ela. E ficou batendo os braços como asas, gritando com a voz esganada: arara, arara. Ele ficou meio encabulado, mas depois achou graça nela sendo arara. Achou graça assim, sem rir. Quando ela parou, ele segurou na mão dela e foram em direção ao bosque por trás da gaiola das araras.
Quanto tempo fazia? Quarenta, quarenta e cinco? Não era bom nesse negócio de tempo. Sabia apenas que fazia muito, muito tempo que estiveram ali, na sombra daquele bosque de temperatura amena, quase fria. Muito tempo, mas ele ainda sentia a pressão dolorida da casca da árvore na palma de sua mão. Da tensão do seu braço estendido apoiando o peso do seu corpo. Do jeito dos olhos dela pedindo que ele se chegasse mais. Do calor do corpo dela quando ele se chegou mais.
Não se lembra quanto tempo ficaram assim. Não era bom nesse negócio de tempo, já disse. Lembra, sim, de cada beijo, de cada parte do corpo dela por onde viajou sua mão. De cada suspiro que ela deu e de quantas vezes disse meu amor. Lembra do canivete no bolso, do canivete na mão, do canivete na casca da árvore desenhando um coração. E dentro do coração a letra agá de Henrique e a letra tê, de Tereza.
Foi mais ou menos ali, no fundo daquele bosque, por trás da gaiola das araras. Nesse lugar, por onde agora ele errava, os olhos trespassando as árvores em busca de uma árvore que não estava ali. Procurava uma árvore com um rapaz, uma moça e um coração com duas letras. Procurava um tempo que dormia naquele bosque, cansado de esperar por eles dois.
Arara, arara, gritava a arara, ainda ali, como se fosse ela.

*

29 agosto 2006

Mascates da noite



Gosta de poesia? A pergunta toma de assalto a quem passa na rua ou conversa na mesa do bar. Posso apresentar o meu trabalho? É o passo seguinte se você ficar calado, surpreso com a sem-cerimônia da intervenção. Aí o garoto ou a garota põe o livro em suas mãos, como se não restasse nada mais para você fazer do que comprá-lo.
Geralmente é um livro pequeno, artesanal, com uma capa horrível, em caracteres quase ilegíveis. Alguns poucos têm acabamento mais esmerado, pouquíssimos têm até fotografias. Mas não é a aparência que importa. Nem mesmo importa se os poemas são bons ou não. O importante é que sejam livros. E livros de poesia.
Não entendo as pessoas que alardeiam que a poesia está desaparecendo. Muito menos os que reclamam da falta de mercado para os poetas. É só sair à noite para ver que tudo isso é preconceito ou má vontade. Verá poetas aos montes que fazem pilhas de poemas e publicam livros, muitos livros.
As noites do Rio, de Parati, de Olinda e do Recife, as noites de qualquer cidade deste país estão cheias desses mascates que insistem em passar suas mercadorias poéticas a um preço em conta. Vendem nessas noites o produto de outras noites que atravessaram insones em busca da palavra que achem mais precisa no verso que achem mais enxuto na esperança do poema mais perfeito que na maior parte das vezes falta ao encontro marcado antes dos primeiros vermelhos do dia.
Gosta de poesia? Então perca o apego àquela nota de dez reais e compre o livro do poeta. Faça um pouco mais. Leia o livro assim que chegar em casa. Você pode ter uma surpresa ao ver que valeu a pena ter dado ouvido e crédito a um desses muitos mascates noturnos.

24 agosto 2006

Sucesso na feira



Dizem que quando uma mulher começa a fazer sucesso na feira, está na hora de entrar num regime. O que deve, pois, fazer um escritor quando passa a ser sucesso na feira?
Claro que não estou me referindo a nenhuma feira literária, que ainda estou longe de fazer sucesso nessas plagas. A feira que eu falo é perto daqui de casa, a feira suja e feia do Bairro dos Estados.
Cheguei uma manhã na barraca do Walter, de quem sou freguês antigo, para pegar meu sortimento semanal de frutas e verduras. Senti um certo estranhamento, alguma coisa havia mudado no modo como me tratavam. Fiquei meio desconfiado, pois conheço bem o espírito das feiras e o da barraca do Walter em particular.
O mistério foi revelado quando Mauro, o meu escolhedor de laranjas preferido, se abaixou no lado de dentro do balcão e veio à tona com um jornal na mão, perguntando se eu conhecia o sujeito da fotografia na capa do caderno. Lá estava eu, ilustrando uma matéria sobre o lançamento do meu romance, Memória do fogo.
Cheio de cerimônias, Mauro me contou que estava procurando umas folhas de papel para embrulhar umas macaxeiras quando deu de cara com minha cara estampada no jornal. Eu mesmo sou um fornecedor de jornal velho para os embrulhos da barraca. Coincidência ou não, havia desaparecido daqui de casa exatamente o jornal com a matéria que ele me mostrava. Foi muita sorte minha poder recuperá-lo.
Mas a coisa não tem sido fácil. Mauro me garantiu que quando lesse a matéria, me entregava o jornal. Só que já faz duas semanas do acontecido e o jornal ainda está com ele. Diz que ainda não terminou de ler. Enquanto isso, minha fama vai se alastrando em círculos concêntricos a partir da barraca do Walter. Tenho certeza de que eles estão me usando para fazer merchandising.

20 agosto 2006

Pobre criatura


Concordamos que tem muita criatura que sofre nas mãos do seu criador. Mas poucas sofrem tanto quanto Jailson nas mãos de Antônio Mariano. Em noventa e cinco páginas o pobre leva uma surra, confundido com um ladrão que ele mesmo perseguia; é tratado como uma criança invisível pelos pais; é demitido por justa causa sem justa causa; morre de uma porrada do próprio pai; morre envenenado pela tia que ele mesmo tentou um dia envenenar mas se arrependeu; morre outra vez picado por uma viúva negra que o tirou para dançar; fica com fome enquanto os outros comem – por via oral – sua namorada Maria Dulce; leva um sopapo entre o nariz e o beiço com o caroço de uma fruta atirado por uma menina que ele queria bem; é internado na Colônia Juliano Moreira por descobrir-se poeta; é responsável pelo desaparecimento de Alice, sua irmã, num poço que aparece de repente no meio do caminho. Por fim, Jailson morre definitivamente nas mãos de um amarelo, quando “o sol apontava no nascente espantando a sombra da noite, imensa asa sobre o dia.”
Imensa asa sobre o dia, da Coleção Tamarindo, é o título do livro de contos em que Antônio Mariano maltrata o pobre do Jailson. E faz isto com tamanha competência sádica que leva o leitor ao deleite, cooptado pelas astúcias do estilo e da imaginação do autor. Quanto mais sofre Jailson, mais goza quem lê Mariano. Sabemos que assim é a vida, pelo menos a vida que imita a arte, mas não precisava exagerar.
Além do mais, o autor nos engana ao se fazer de contista. O que esperar de um poeta que se lança aos contos? Que recheie seus contos de poesia, como um confeiteiro rechearia um pão; um sacoleiro, a sacola; um traficante, o fundo falso da mala. Um inspetor de alfândega competente não deixaria passar como simples prosa os contos de Imensa asa sobre o dia, cuidadosamente editado por Juca Pontes para a Editora Dinâmica. O próprio título do livro já denuncia a presença dos grãos finos da poesia no granulado da prosa. E quanto mais Antônio Mariano domina os dois ofícios, mais sofre o pobre do Jailson em suas mãos.

16 agosto 2006

Romeiros


Sem rumo certo, vão e vêm de cabeças baixas. Seus corpos ondulam numa coreografia sonâmbula. Sozinhos, aos pares ou em pequenos bandos, dão alguns passos e param. Só aí se vê que não é de tristeza a expressão de seus rostos. É de um certo êxtase, de quem não acredita de fato que está ali. Logo voltam a olhar para o chão e a caminhar lentamente sobre as pedras. São os romeiros de Parati, numa insólita procissão em louvor da palavra. A pluralidade das vozes denuncia: estão ali para a Festa Literária Internacional de Parati, a Flip. O comportamento estranho entre o cabisbaixo e o êxtase deve-se ao calçamento irregular feito de pedras no tempo da colônia. É impossível andar olhando para frente ou para os lados. É preciso parar para poder ver as casas, as galerias, as livrarias, os bares e botecos que disputam nossos olhos. É parado também que se vê o passar do tempo sobre o lugar. E somente parados podemos procurar o olhar do outro com quem compartilhar o deslumbramento.
O Clube do Conto de João Pessoa estava lá. Na noite de quinta-feira, dia 10 de agosto, no Che bar, fizemos uma autêntica farra literária paraibana, batizada de Parathyba. Vendemos livros, sorteamos livros, demos muitos livros. O bar estava lotado. Muita gente estava lá para conhecer a turma daquela freira da Paraíba que tinha feito o maior sucesso na mesa de abertura da Festa, na manhã daquele dia. E foi a própria Valéria Rezende que apresentou o Clube.
Valéria, Barreto, Marília, Suênio Campos e eu erramos como romeiros pelas ruas de Parati. Fomos festejar a palavra. Cabisbaixos algumas vezes. Em êxtase na maior parte do tempo pela beleza da polifonia.

05 agosto 2006

Nevinha



Detesto cidade com nome de gente. Disse isto e deu as costas ao pôr do sol. Inda mais com nome de homem, resmungou de braços cruzados, sacudindo dos ombros o braço do namorado. E logo um homem dessa qualidade, que judiou sem dó de um casal de amantes. Deu um muxoxo e fez menção de ir embora. O jardim do Hotel Globo tinha perdido toda a graça.
Não vá embora Maria das Neves, suplicou o namorado, vendo se dissipar todo o seu projeto de romantismo para o fim de tarde. Que nome você quer que eu bote na cidade?
Sei lá. Veja as cidades daqui de perto. Tem tudo nome bonito: Recife, Olinda, Natal. Até Campina Grande é um nome bonito. E nenhuma tem nome de gente, muito menos de homem.
Vamos ver. Se voltar a ser Parahyba, assim com h e y, você gosta? Não, que já é o nome do estado. Fica feio: Paraíba, capital Parahyba.
Olha, os holandeses chamaram de Frederica, fica bem? Claro que não. Também é nome de gente, mesmo sendo de mulher.
E se a gente for mais pra trás e botar Filipéia de Nossa Senhora das Neves, que foi o primeiro nome que ela recebeu? É muito grande, ela retrucou. Além do mais, lembra o nome de Filipe, que também é de homem.
Então a gente tira o Filipéia e fica só Nossa senhora das Neves, concorda? Sei não. Tem muita cidade com nome de santo que eu gosto: São Paulo, Santa Catarina, São Francisco, São Petersburgo... Mas como vai se chamar quem nascer aqui, nossassenhoradasnevenses? Nem pensar.
Ta bom. Então a gente chama ela de Nevinha. Igualzinha a você.
Ela não nunca tinha contado pra ele, mas sua mãe era devota de Nossa Senhora das Neves. Seu nome era uma homenagem à santa padroeira da cidade. Por isso fazia questão de todo ano ir comer maçã- do-amor na Festa das Neves.
Nevinha, ele sussurrou. Acho que fica bem nesta cidade pequena e bonita como você.
Ela então se viu como a cidade. Banhada por um lado pelo mar, por outro pelo rio Sanhauá que naquele momento acolhia o pôr do sol. Procurou localizar os lugares do seu corpo onde poderiam ficar os lugares da cidade. Aqui o Varadouro, ali o Porto do Capim. Mais abaixo o Roger, Tambiá. Jaguaribe um pouco mais de lado. Lá embaixo, Mangabeira perde-se da vista. Cada braço, um braço de mar. Cada coxa, uma praia. Cada seio, uma falésia. No solado dos pés, as favelas difíceis de ver. Nevinha sentiu seu corpo formigar de gente, suas veias servindo de ruas para ônibus e automóveis. No centro de tudo, a umidade insalubre da lagoa.
O sol já está mergulhado no rio quando Nevinha entrega ao namorado sua metáfora da cidade.

04 agosto 2006

Os tubarões de Barcelona


Sabendo que não terminaria a longa travessia que fazia com seu filho Jorge entre Barcelona e Buenos Aires, dom Ricardo Aldaya “observava o bando de tubarões que seguiam o navio desde pouco tempo depois da escala em Tenerife”. Não acreditou na explicação dos marinheiros de que era comum aquela vizinhança sinistra nos cruzeiros transoceânicos. Os tubarões se alimentavam da carniça que os barcos iam deixando para trás. “Mas dom Ricardo Aldaya não acreditou. Estava convencido de que aqueles demônios o seguiam”.
Um dia, Jorge acordou e viu o beliche do pai vazio. “Encontrou o roupão abandonado na popa do navio, ainda morno. O rastro do navio se perdia num bosque de brumas escarlate, e o oceano sangrava, reluzente de calma. Pôde ver então que o bando de tubarões não mais os seguia, e que uma dança de barbatanas dorsais se agitava em círculos ao longe.”
Este pedaço de história faz parte de um romance maravilhoso que li há poucos dias, chamado A sombra do vento, do escritor catalão Carlos Ruiz Zafón, que fala de livros e segredos escondidos na cidade de Barcelona. A edição é da Objetiva, de 2004.
Nunca estive em Barcelona, mas o livro de Zafón me deu saudade dela. Por isso, procurei na estante um outro livro lido já há algum tempo que, como era de esperar, não estava na minha estante. Como tudo que desaparece aqui de casa, se não estava no quarto de Iandê, com toda certeza estaria no apartamento de Raíja. Estava. Trata-se de A cidade dos prodígios, de Eduardo Mendoza, editado pela Companhia das Letras, em 1987.
Estava na página 27 do livro quando me deparo com um trecho de carta enviada dos Açores para sua mulher por Joan Bouvilla, numa viajem em direção a Cuba: “A travessia é boa, hoje vimos tubarões; seguem perigosamente o barco em bandos, à espera de que algum passageiro caia n’água; então, devoram-no de um bocado: trituram-no todo com sua tripla fila de dentes; daqueles que conseguem fazer presa e devorar não devolvem nada ao mar.”
Sou acostumado a estas coincidências no meu processo meio demente de leitura. Mas nunca deixo de me espantar com elas. Caminhei um pouco mais no livro de Mendonza até encontrar, na página 35, um trecho que pode muito bem explicar a presença dos tubarões nos mares duvidosos dos romances. Nos idos de 1701, a Catalunha teria tomado o partido da Áustria na guerra da Sucessão. Por isso, foi duramente castigada pela vitoriosa Casa de Bourbon, entronizada na Espanha, sofrendo todos os castigos possíveis ao seu povo, suas cidades e campos. É aqui que entram os tubarões: “O porto de Barcelona foi semeado de escolhos; foram lançados ao mar tubarões trazidos especialmente das Antilhas em cisternas, para que infestassem as águas do Mediterrâneo. Felizmente, este meio lhes foi adverso: os que não morreram por causa do clima ou da ingestão de moluscos emigraram para outras latitudes pelo estreito de Gibraltar, nesse tempo já em poder dos ingleses.”
Agora é só esperar que outro escritor imaginoso venha responsabilizar os tubarões de Barcelona pelos ataques aos surfistas em Pernambuco. Esses escritores são capazes de tudo.

02 agosto 2006

Salto Getúlio



(Publico de novo para ver se tenho mais sorte no blolg)

É muito chato ser chamado de mentiroso. Pior ainda quando isso acontece na sua própria casa. Um belo dia, por absoluta falta de assunto para animar o almoço, falei que, no tempo em que era menino, as moças usavam sapatos com salto Getúlio. Ante a curiosidade das meninas, aproveitei mais aquela oportunidade de exibir meus conhecimentos enciclopédicos, que alguns ressentidos chamam de lixo da minha memória. Expliquei que era um salto não muito alto e arredondado, por isso mesmo batizado com o nome do Presidente da época. Também era conhecido como salto GG, o apelido carinhoso do nosso Pai do Povo. Minha mulher nem me deixou acabar a descrição: nunca ouvi falar disso, fulminou.
Quem me conhece sabe que não sou de deixar barato. Claro que o salto Getúlio existia e eu ia provar. A primeira providência foi recorrer à internet. Tudo o que o Google conseguiu me informar foi que na cidade de Salto, no Rio Grande do Sul, existe uma estátua de Getúlio Vargas.
Desassistido pela tecnologia, botei as incrédulas no carro e fui pedir auxílio às mulheres da minha família em Maceió, pois foi lá que passei a maior parte da minha infância. A única tia que me resta foi categórica: você está inventando. Uma prima mais velha, por pura piedade, tentou confirmar a existência dos tais saltos, mas se saiu tão mal que ninguém acreditou na sua palavra.
A partir daí, minha vida se transformou num tormento. Disposto a mover céus e terras para recuperar a autoridade mortalmente ferida no seio familiar, transformei numa questão de honra provar a existência do salto Getúlio. Hoje, não posso ver uma senhora de meia-idade na minha frente que vou logo implorando pela confirmação da minha crença. Enquanto isso não acontece, vou ficando cada vez mais exposto ao escárnio da ala feminina da minha família que, para minha infelicidade, é enorme.
Numa última tentativa de acabar com este sofrimento, rogo à distinta leitora que me informe sobre qualquer indício da existência do salto Getúlio. Meu e-mail é rona.monte@terra.com.br. Até minha mulher anda com pena de mim. Já não diz que é mentira, mas uma fantasia da minha parte. Daí para chamar de delírio e me mandar consultar um amigo psiquiatra é um pulo. Como pode ver, cara leitora, minha reputação está nas suas mãos. Melhor dizendo, na sua memória.

Sob o signo do fogo




Eu quero acreditar que quando Ronaldo nasceu, lá pelas bandas das Alagoas, uma legião de anjos se reuniu, ao redor de uma fogueira, para vaticinar o futuro do menino.
Um primeiro anjo, encarregado de olhar pela educação no mundo, disse: “Vai, Ronaldo, ser professor, vai ajudar teu povo a pensar.” Um outro anjo, daqueles mais estudiosos, que já tinha ouvido falar em Freud, asseverou: “Vai, Ronaldo, estudar psicologia, te dedicar à psicanálise, vai procurar o dentro da tua gente, da gente do teu Nordeste.” Mas outro anjo também entrou na conversa: “Vai, Ronaldo, ser poeta, vai ser escritor, vai ver o que os outros não vêem, vai brincar com as palavras, vai brigar com as palavras, vai falar pelos que não falam, vai escrever pelos que não escrevem.”
Um outro anjo ainda, daqueles mais inventivos, quis fechar a reunião: “Vai, Ronaldo, põe as mãos no fogo, puxa pela memória, e faze tudo isso com criatividade, diferente, fora dos eixos já repetidos, já conhecidos.
Sob o signo do fogo mítico, imaginário, uma legião de amigos se reúne nesta noite, neste espaço bonito, em torno de Ronaldo e de um livro. E relembra essas décadas de vida e comemora o lançamento de Memória do fogo.
Na verdade, Ronaldo vem realizando aquelas profecias, somando-as e multiplicando-as.
Providenciando a sobrevivência difícil de estudante pobre, em Pernambuco, foi redator de propaganda, em agências de publicidade. Buscando dizer muito, com poucos meios, começou a forjar a sua luta com as palavras.
A Paraíba o acolheu, no final da década de 70, como a tantos de nossa geração, como professor. Na cátedra, sempre instigante, passa a transmitir conhecimentos, mas, sobretudo, se dedica a ensinar a pensar, a provocar o espírito crítico, a produzir conhecimento novo. A sala do professor se amplia no divã do psicanalista, para, como um dos seus personagens, “ver o que está dentro das pessoas, ou bem o que sai de seus poros”.
Como um fio condutor dessas atividades e fruto do seu espírito irrequieto e produtivo, o papel, a máquina de escrever e o computador passaram a sofrer nas suas mãos. E o verbo vai se fazendo poesia, conto, crônica. E, agora, ateando de vez fogo na memória, chega ao romance.
Memória do fogo, publicado pela Objetiva, do Rio de Janeiro, é produção de cabeça madura, de escritor polivalente que sabe o que quer fazer. A erudição do professor e do psicanalista/filósofo, que reflete sobre a condição da existência humana, não o impede, pelo contrário, o impele a valorizar as manifestações e os sentidos vários da cultura do povo, atando o culto e o popular, “numa surpreendente teia de relações”, como já observou Rosa Amanda Strausz.
Caboclo Pena, Caipira, Pai do Mato, Comadre Fulozinha, a oração da cabra preta milagrosa, o catimbó, ou mesmo a música “Bodas de Prata”, lembrada na voz de Carlos Galhardo, se tornam ingredientes narrativos, tratados não com um olhar exótico, senão com o respeito pelo povo e suas formas de manifestação cultural.
O livro desrespeita paradigmas tradicionais. Não cede à tentação de uma trama fácil, com princípio, meio e fim. Cada um dos sete capítulos se liga aos outros, mas proclamam a sua autonomia, numa engrenagem narrativa que exige, para o deleite, a atenção do leitor.
Talvez só por obrigação de ofício crítico, podemos falar de personagens em Memória do fogo. O que vemos, lapidadas, sim, no exercício ficcional, são pessoas de verdade, reveladas (revelar é tirar o véu) nos seus sofrimentos, nas suas desesperanças, nas suas crendices, nas suas dúvidas existenciais, nos seus pedaços de vida.
O narrador se ombreia a Cara Preta – e aqui eu cito o texto de Ronaldo – que sofria muito, desde menino, porque não via o lado de fora das pessoas, via o que ninguém via. E o mais das vezes era feio o que via. E era como se a marca da alma do outro fizesse uma marca na sua própria a cara. Mas não sabia dizer o que via.E esse não saber dizer era o que mais o agoniava.
E o narrador/psicanalista empresta o seu olhar e o seu dizer para – volto ao texto – dizer a verdade de dentro das pessoas. Daqueles homens de corpos atarracados que pareciam de homens, pois ninguém ali crescia muito, era difícil distinguir pelo tamanho um homem de um menino. Mas a cara deles era de menino.Cara de quem ainda espera pelo tempo. Os nomes de batismo esquecidos, agora se chamam Cara Preta, Caçarola, Massapé, Meia Luz, Darque.
A bebida – e bebe-se muito – é o gim, a cidra, a cachaça, o conhaque de alcatrão.A festa é o casamento que não houve, pois Zé Maria e Darque são irmãos.
É a miséria humana, simbolizada a todo tempo pelo fogo que reúne a todos numa irmandade que se consome.E é Joana d’Arc, a que morreu queimada, a Darque, que une os fios da narrativa, que acaba integrando – cito o texto – a irmandade de fogo que queimaria para sempre a dor que carregavam na memória.
E na fogueira se reduzem a cinzas.Acaba a vida, acaba a narrativa.Porque não há mais nada a fazer, porque não há mais nada a dizer.
Ah, meus amigos, minhas amigas, amigos e amigas de Ronaldo, eu me esqueci de dizer, no início, que naquela conversa, um anjo mais gente, daqueles que viam o que estava dentro das pessoas, é quem de fato fez o último vaticínio: “Vai, Ronaldo, ser gente na vida.”
Ronaldo, você é professor, você é psicanalista, você é poeta, você é escritor. Mas, Ronaldo, você é tudo isso, e bem, porque você é gente.


Neroaldo Pontes de Azevedo

João Pessoa, 21 de julho de 2006

Zarinha – Centro de Cultura

01 agosto 2006

Vistam saias meninas: é agosto



Há um certo prazer em falar mal de agosto. Dizem que é o mês das bruxas, onde cai o dia das sogras, foi quando morreu Getúlio e costumam ocorrer desgraças políticas. Pouca gente fala bem de agosto. Quase ninguém se lembra que é o mês do mais belo luar do ano, promovendo encontros e reconciliações entre os já românticos e convertendo ao romantismo alguns indecisos pós-modernos. Em mim, particularmente, o luar de agosto produz um estado intermediário entre uma lânguida melancolia e uma vontade enorme de uivar.
É certo que em alguns anos agosto lembra um velho sombrio, com suas nuvens cinzentas, suas chuvas fora de hora, invadindo maleducadamente com seus miasmas setembro a dentro. Mas num ano como este, agosto merece ser tratado com toda a consideração. Já na primeira semana faz um sol quase de verão, esquentando um pouco a água do mar, levando à praia uma boa safra de mulheres e, vá lá, alguns homens dignos de nota. Só temos que aturar o vento forte, o bom vento de agosto que, se algumas vezes aborrece ao derrubar varais, espalhar jornais ou varrer areais, nos compensa com um dos mais belos espetáculos ao ar livre: a dança das saias.
E não me venham dizer que isto é coisa que só interessa aos homens. Alguma coisa me diz que as mulheres esperam ansiosas por agosto, preparam-se em academias e clínicas de beleza para o encontro com este mês abertamente masculino. E tenho certeza que uma pesquisa de mercado revelaria um forte incremento no comércio de saias ou cortes de tecidos para elas, cremes e óleos para pernas, além de peças íntimas de langerri a serem desvendadas num momento de estudada distração. Os homens esperam por agosto como a um velho camarada. Um amigo maroto que faz por nós o que mais gostaríamos de fazer em plena rua: levantar as saias das mulheres.
E reparem bem no rosto de uma mulher a quem o vento de agosto vai levantar a saia. Há, de início, uma certa expectativa, quase uma ansiedade, um temor de que não sopre vento nenhum e tenha sido em vão todo o preparo, todo o cálculo de chegar naquela esquina no momento em que um homem, ou um grupo de homens, passa atento pela calçada contrária. Logo, sopra o vento. Primeiro, de leve, deslocando os cabelos e fazendo a vítima fechar os olhos numa mescla de vago aborrecimento e satisfação. Quase um agradecimento.
Ato contínuo, vem o farfalhar da saia. Aí é necessário que a dona da saia tenha alguma coisa em uma das mãos. Pode ser um sortimento de livros e cadernos, algum pacote não muito volumoso, até sacola de supermercado serve em certos casos. O importante é que apenas uma das mãos fique livre para segurar a saia em um dos lados, deixando o outro ao sabor do vento de agosto e dos olhos dos seus gratos amigos do outro lado da rua. O movimento, brusco mas não tanto, de segurar um dos lados da saia leva a um certo desequilíbrio que faz com que o volume sustentado pela outra mão ameace cair. Nisso, a mão que segurava a saia vai em ajuda à sua irmã, deixando agora todo o campo livre para o trabalho do vento e dos olhos.
Há variações do rito, é certo. A melhor delas é quando agosto apanha com seu vento um bando de mulheres no meio de uma ponte ou numa rua larga, de preferência ladeirosa, em que estejamos todos subindo. Mulheres na frente, como manda a boa educação, homens regulando o passo até alcançar a melhor distância para um visão de conjunto e, finalmente, ele, o ruidoso, o assobiador, o vigoroso e salutar vento de agosto, causando desordem e euforia, quebrando a monotonia das tardes friorentas.
Estamos no começo de agosto. Já é tempo, meninas, vistam saias. E deixem brincar com elas o vento de agosto, para o alimento de vossas vaidades e o bem dos nossos olhos. Antes que todos, olhos e vaidades, sejam desviados pelo despudoramento de setembro, escancarando corpos e tornando vulgar o jogo sedutor que agosto sabe tão bem jogar.

(Publicado em Memória curta, 1996)

Memória do fogo


Cinco homens e uma mulher se reúnem em torno da fogueira. O mesmo gesto repetido há milênios pela humanidade. Ao fogo entregamos nossas indagações e perplexidades. Das chamas partilhadas saíram nossas crenças e mitos, nossa história e nosso conhecimento.
Para os sete que ali se reúnem, no entanto, não existe grandiosidade. Nem esperança. São jovens, mas não conseguiram atravessar a ponte que separa a infância da vida adulta.
Precocemente fracassados, perdidos em algum ponto do Nordeste brasileiro, perderam-se também do fio que conduz a vida. Em volta do fogo, partilham apenas a cachaça, a água que queima.
É para a miséria humana que se dirige a atenção de Ronaldo Monte em seu romance de estréia. Para as dores que atravessam o tempo e permanecem inexplicáveis. Para o sofrimento exaustivamente investigado por filósofos, poetas, cientistas, e jamais compreendido.
A prosa de Ronaldo Monte mistura a psicanálise e o catimbó, a filosofia e a tradição oral, o erudito e o popular, numa surpreendente teia de relações. Na Memória do fogo, tudo arde - a começar pelo olhar do autor, que constrói amorosamente suas personagens, como se todos fizessem parte de uma mesma irmandade. E é nela que nos envolvemos ao iniciar a leitura. Como que hipnotizados pela luminosidade de uma fogueira primitiva, como que também embriagados pelo poder da palavra do romancista.

Rosa Amanda Strausz

Riscos do amor

O poeta é um fingidor, etc. etc. O poeta Francisco Dantas finge amar a quem deveras ama e para tanto escreveu versos e fez rimas, tornou-se humilde e contou mentiras.
Dante teve sua Beatriz. Dantas tem a sua Elisalva. E por ela desceu aos infernos, purgou no andar do meio e por certo subiu aos céus, ao céu efêmero dos poetas.
Dantas chamou de Instantes poéticos o seu livro de poemas. Um título modesto, posto por quem quer mostrar seus versos aos amigos, exibindo-os primeiro em seu blog. È um livro escrito entre a sala e o quarto do poeta, “uma solução caseira”, como disse Sérgio Castro Pinto. Tão caseira, que a própria musa se dá o direito de interferir na obra e responder com “outra serenata” à “serenata” do autor.
Obcecado pelo seu objeto de desejo, Dantas destila sua paixão por todos os poros dos seus poemas. E mesmo quando corajosamente expõe seu “ato solitário”, lá está o corpo da amada alimentando suas fantasias.
Amar, todos sabem, é muito arriscado. Para os poetas, então, é um risco de aniquilamento. O poeta que ama é um carente de palavras que traduzam com justeza o tamanho de suas paixões. Daí o risco do exagero eloqüente dos verbos, da fartura dos adjetivos. Dantas correu o duplo risco de amar e de escrever poemas de amor.
Em versos quase sempre despojados, obrigando-se às vezes a um excesso de simplicidade, Dantas nos mostra a complexidade do seu amor, pelas diversas vias que usa para dar conta dos meandros de sua devoção.
Mas não se engane o leitor com esta “simplez”. Dantas conhece o riscado. É doutor em Letras e autor de A frase caótica, livro indispensável para quem quiser saber mais sobre o estilo dos escritores contemporâneos. Sabe, portanto, os riscos que corre ao amar e ao expor o seu amor em seus poemas.

Isso e aquilo

Homens são dali, mulheres de acolá. Filhos são isso, pais são aquilo. As livrarias estão cheias de livros tentando nos convencer que a humanidade pode ser singelamente classificada em duas categorias opostas. Alguém certamente dá crédito a essas classificações, pois esses livros se produzem aos montes e não saem das listas dos mais vendidos.
Deve dar um certo conforto ao leitor descobrir que não é responsável direto por suas esquisitices, seu mau humor, sua intolerância. Melhor ainda é saber que não está só neste quadrado da tabela. Metade da humanidade está com ele. A outra metade está do outro lado, pronta para ser tratada como o inimigo da vez. Quem não for isso, forçosamente será aquilo.
Não consigo entender por que com tanto planeta rodando em torno do sol, escolheram somente júpiter e marte para simbolizar o homem e a mulher. Pelo menos o horóscopo é mais generoso, nos oferecendo doze alternativas de classificação.
Devo ter um parafuso a menos, pois não consigo me sentir confortável em nenhum desses lugares em que tentam me colocar. Do outro lado do balcão, na minha cadeira de psicanalista, a coisa fica muito mais complicada. Quando se vai formando uma idéia mais ou menos clara da nebulosa que me fala, aparece de repente um dado novo, uma palavra nova, um sonho novo que destrói o meu parco entendimento e me obriga a recomeçar quase do zero.
Não, minha gente. Eu não sou isso, nem vocês são aquilo. Na maioria das vezes nem sabemos bem o que somos. Tem dia em que acordamos de um jeito e vamos dormir de outro. Às vezes somos assim, outras vezes somos assados. E necessariamente experimentamos todas as gradações possíveis entre o cru e o cozido.

Berço dos amantes



Faz algum tempo que uma amiga antiga me mostrou uma foto que me tocou profundamente. Numa cama de casal, sobre um lençol branco, seus velhos pais estão deitados. Ela, visivelmente, dorme. Ele não sei, pois está virado para ela, com o braço direito descansando nos ombros da mulher. A impressão é de que vela o sono da velha amada.
Ela dorme serena nos braços do seu amado. A expressão do seu rosto é de entrega e repouso. Sabe que aquele braço que a envolve não é mais capaz de defendê-la da fúria do mundo. Mas sabe que ele a defenderá dos perigos dos seus sonhos. Das agonias de sua alma. Se acordar assustada, ele estará ali para dizer que durma, que está tudo em paz.
Ele, por certo, também sabe que sua força física já não basta para vencer o mundo. Mas o seu braço sobre o ombro dela ainda é capaz de garantir, com a leveza necessária, um sono sem sobressalto. Vela este sono como a sentinela vela o repouso da antiga vila. Insone, em silêncio.
A foto tem um tom azulado, emprestando à cena um ar difuso, como de um rio em que vaga um barco envolto em neblina.
Um rio. O leito é um rio que translada os corpos dos amantes exaustos de tão longo curso.
Um barco. A cama é um barco à deriva cortando já as franjas brancas que anunciam a foz da eternidade.
Um berço. O leito é um berço onde se canta uma canção de ninar ao amor, que o amor é sempre menino.
Rio, barco ou berço, o que tenho em minha frente é a fotografia do amor medido em braças, quadras, léguas de tempo. Contemplo dois amantes, velhos amantes medidos pelo tempo. E o tempo que tinge de azul o espaço exíguo do leito diz seu dito de verdade: estes dois me viveram com amor. Rio, barco ou berço, o leito acolhe agradecido o veredicto do tempo.