24 outubro 2012

Aprendizes da palavra

  O poeta é aquele que está sempre aprendendo a falar. É por isso que todos nós somos poetas. O ‘infans’, que em latim significa o sem palavra, vive desde e para sempre dentro de nós. Somos todos morada de um eterno infantil. Carregamos um estranho infante em nossas entranhas. Uma criança estrangeira ávida de palavras com que habite o país da linguagem. Um núcleo infantil que tentamos esvaziar com as palavras, mas que se renova a todo instante, insatisfeito com a matéria que lhe ofertamos. Somos eternos famintos de poesia.

Nascemos imersos na linguagem, mas a linguagem dos primórdios é um grande enigma depositado em nós por esse outro que nos fala e só aos poucos aprendemos a traduzir. Não entendemos, de saída, as palavras. Mas somos desde logo envoltos em sons, imagens, odores e gestos aos quais, aos poucos, serão adicionadas as palavras com as quais as identificaremos. A complexidade da fala dos adultos, entretanto, deixará muitas falhas na compreensão das mensagens pelo aprendiz da palavra. Haverá sempre um resto destes sons, cheiros, gestos e cenas primordiais que fazem permanecer o infante em nós.

Como ensina o poeta Carlos: precisamos sempre aprender novas palavras e tornar outras mais belas para dar vazão aos enigmas que restam e instigam, exigindo tradução. A tarefa do escritor, nos diz Proust, é a tarefa do tradutor. Para escrever o livro essencial que existe em nós, acrescenta, o escritor não precisa inventá-lo. Precisa apenas traduzi-lo.    
         A função do poeta é fornecer novas palavras que facilitem este trabalho tradutivo. É função de todos nós ofertar a palavra poética a um número cada vez maior de falantes, para que todos, ricos de novos sentidos, possamos dar a este infante, que ri e chora em cada um de nós, as palavras que nos faltam para nomear as origens deste riso e deste pranto. 

Imagem obtida em: araucaria.pr.gov.br

Aprendendo a perder



A vida é uma travessia de perdas. O barco pesado da nossa existência precisa se livrar de seus excessos para cruzar sem sustos o caminho de uma margem a outra deste rio imprevisível. Ganha-se muito quando se aprende esta verdade: viver é aprender a perder.
Sou um campeão de perdas. Já perdi a infância, toda a juventude, boa parte da saúde que herdei da idade madura. Já perdi pai, mãe, filhos, irmãos, tios, primos e sobrinhos. Alguns dos meus amigos já se foram, alguns mesmo antes de morrer. Muitos sonhos inúteis também foram jogados à água. Muita presunção, muitos desejos descabidos.
Já perdi bondes, trens, ônibus e aviões. Até a barca de Cabedelo já perdi um dia. Cheguei atrasado em muitos encontros. Já esperei por muita gente em vão. Já esperei o sol e choveu muito. Já esperei a chuva e o céu limpou. Perdi livros, perdi cartas, perdi talões de cheques, perdi brigas. Perdi a cabeça muitas vezes. Perdi a paciência com os políticos.  Já perdi a conta dessas perdas.
De nada adiantou tanto esforço em construir, juntar, acumular. Discos, livros, bugigangas, pedras apanhadas nos caminhos, tudo lastro inútil, destinado ao fundo do rio. Inúteis as centenas de resmas de papel desperdiçadas em dissertação, tese, artigos, poemas, contos, crônicas, romances. Tudo isto será jogado às águas antes do barco aportar na outra margem.
A esta altura da vida, meu barco está quase vazio. Até mesmo a lembrança de certas coisas já está se perdendo. Luto em manter um mínimo de fios de memória para poder saber quem em sou ao chegar ao fim desta viagem. Pois terei ao menos de dizer meu nome ao barqueiro do outro barco que me espera para outra travessia. E é bom que eu chegue leve, pois os braços de Caronte estão fatigados com o eterno trabalho de conduzir seus passageiros pelo rio onde se perde de vez toda a memória.

Imagem obtida em: clubedotaro.com.br

13 outubro 2012

Duas cenas




Na semana passada, testemunhei duas cenas, ambas em Cabedelo.
Cena 1: um grupo de mais ou menos cem crianças atravessava a pista, vindas da praia em direção à escola. Displicentemente, uma delas deixou cair sobre a pista uma embalagem de salgadinho. Logo depois, uma das professoras que acompanhavam o grupo apanhou discretamente a embalagem e seguiu seu caminho.
Cena 2: no beco estreito da feira de verduras e frutas, um homem jaz no chão lamacento, acometido de um ataque epiléptico. Sentado no chão, outro homem protegia com as mãos a cabeça do outro, evitando que entrasse em contato com a lama. Não havia curiosos em volta. As pessoas apenas passavam comovidas, certas de que nada mais havia a fazer além do que estava sendo feito: cuidar e esperar que chegasse o socorro competente.
Estamos tão entorpecidos pelas notícias de violência e corrupção que nos surpreendemos com essas mínimas demonstrações de respeito e solidariedade cotidianas. Elas acontecem em toda parte, mas não merecem espaço nos noticiários. É preciso catá-las com os nossos próprios olhos. E estes olhos estão viciados a enxergar somente aquilo que a mídia nos mostra: professoras desmotivadas, alheias à educação integral dos seus alunos; homens embrutecidos pela vida miserável dos restos de feira.
Só os olhos sem vícios podem ver o gesto pedagógico espontâneo que vale por mais de mil palavras de um discurso ecológico vazio. Só com os olhos voltados para o chão podemos ver a cena de amor ao próximo contra o fundo lamacento de um beco.
É por conta de cenas como estas que ainda não me deixei vencer pelo desencanto com a humanidade. Pois eu sei que é exatamente isto que a grande mídia quer: que eu perca de vez a esperança e passe a aceitar como normal toda a maldade que os poderosos nos impingem. A grande mídia pertence aos poderosos. Mas contra isto ainda temos os gesto de cuidado que se repetem nas escolas abandonadas pelos governos e nos becos fétidos das feiras.

03 outubro 2012

Duas bocas

Fugu é o nome que recebe no Japão o nosso prosaico baiacu. Um peixe extremamente venenoso que se transforma em iguaria rara nas mãos de raros cozinheiros que passam anos aprimorando a técnica do seu preparo. Os cozinheiros mais experientes não tiram todo o veneno do peixe. Sabem que, em porções mínimas, o veneno do fugu não mata. Acende a paixão dos comensais.  
Fugu é o pseudônimo da autora de “Duas bocas – histórias de comida e sexo”, publicado pela Nova Fronteira em 2011. É também o codinome pelo qual se chamam os dois amantes que compartilham cama e mesa nas 35 histórias do livro, cada uma acompanhada de uma receita testada pela autora.
Neste tempo de pornográficos tons de cinza, é um prazer – um verdadeiro prazer – ter nas mãos as variações de todas as cores do erotismo em um livro que respeita a nossa inteligência e alimenta nossa sensibilidade.
A orelha do livro nos informa que o uso de pseudônimos é “tradição entre os que falam dos prazeres do corpo”. É bobagem, portanto, pensar que o pseudônimo serve para esconder. Despido do seu próprio nome, o autor, “nu, sem história, sem signo no zodíaco nem CPF, consegue atingir a liberdade que só os seres imaginários possuem”.
Seres imaginários nos tornamos nós, os leitores, imersos em nossos próprios corpos, guiados pelas palavras da autora em direção a lugares estranhos do nosso corpo, onde pulsam desejos que relutamos em aceitar como nossos.
“Duas bocas” é um livro tratado por mãos experientes que deixam no texto a porção exata de erotismo para que não nos afoguemos em nosso próprio desejo. Porção sabiamente conservada no corpo do texto, suficiente para sentirmos em nossa própria boca o dilúvio que antecede a posse do corpo amado.