28 fevereiro 2012

O bom e o mau


 

            Esta é uma história de amigos e do que se pode esperar deles. Eu e Barreto estávamos editando o primeiro livro de poemas de Waldir. Para quem não sabe, Barreto era o nome de guerra de Geraldo Maciel. Eu disse era porque ambos, Barreto e Geraldo Maciel, cismaram de sumir de nossas vistas inesperadamente. Waldir continua sendo o competente Dr. Waldir Pedrosa Amorim.
         Estávamos os três no escritório da casa de Barreto dando os últimos retoques na capa do livro de Waldir. As nossas mulheres certamente falavam mal da gente lá pra dentro e um uísque honesto cuidava de manter o tom fraterno da conversa. Fraterno até demais, pois os dois gastaram um bom tempo louvando minhas qualidades, que eu era generoso, disponível, um bom escritor e outras coisas do gênero. Mesmo que não concordasse plenamente com alguns dos elogios, sorria num misto de satisfação e falsa modéstia.
         Aconteceu que o uísque aumentou o calor do escritório (o condicionador de ar estava quebrado) e resolvemos continuar a conversa no terraço. Aí não foi só o lugar da conversa que mudou. Mudou radicalmente a opinião dos dois sobre mim. De repente eu me vi classificado de irônico, gozador, mal humorado e outros epítetos do gênero. Nem o famoso Dr. Jekyll se transformava tão rapidamente no monstruoso Mr. Hyde.
            Quando vi que o repertório dos meus atributos negativos estava superando a lista dos elogios, resolvi interromper a fuzilaria sugerindo que voltássemos ao escritório. Apesar do calor, lá dentro eu era um sujeito bem melhor do que aquele do terraço.   
            Claro que os dois não concordaram e eu só fui salvo da fogueira inquisitória porque vieram avisar que a água do macarrão estava fervendo e cabia a Barreto, famoso pelos seus dotes culinários, calcular o tempo do macarrão ao dente.
         Todos à mesa, aberto o vinho, brindamos ao nosso encontro fraterno. E eu bebi e comi como um frade, feliz com o que ouvi a meu respeito na primeira parte da conversa.  

21 fevereiro 2012

Um mundo para João



João nasceu em plena noite do domingo de carnaval. Chegou saudado pelos tambores dos maracatus do Recife, dos afoxés da Bahia e das escolas do Rio. Nasceu imerso na folia sazonal que assola este País, quando uma amnésia coletiva empurra nossas eternas mazelas para o mês de março.
João nasceu num momento em que uma euforia mal-fundada comemora a maioridade econômica do País, elevado à sexta economia do mundo. E aqui começam os problemas de João.
Ele não sabe ainda, mas escolheu um momento muito complicado para nascer. Já faz tempo que um certo mal-estar avisa a seus pais, tios e avós que alguma coisa muito séria vem acontecendo. Ninguém está dormindo bem. Uma insegurança generalizada em relação ao futuro nos leva a mudanças bruscas de humor.
Não se pode confiar na velha regularidade das estações. A chuva inunda cidades, enquanto o sol racha as terras com tradição de fertilidade. A morte dos nossos semelhantes tornou-se uma coisa banal. Cada vez menos somos comovidos pelo sofrimento dos nossos vizinhos, morem eles em outro continente, num país próximo ou na casa ao lado.
Não quero assustar João enquanto ele mama no seio da mãe ou é embalado pelo pai. Não vou falar dessas coisas enquanto agita os braços ou ensaia um sorriso para a irmã. Tenho vergonha de mostrar a ele um planeta ferido de morte pela nossa ganância. Quando João souber que temos tecnologia suficiente para acabar com a fome do mundo e preferimos usá-la para destruir a vida dos nossos semelhantes, certamente vai ficar com raiva de nós. Por isso, peço desculpas ao meu neto João.
E ao mesmo tempo nutro a esperança de que os Joões e Marias recém nascidos saberão construir um mundo melhor com os entulhos do mundo que entregamos a eles. Um mundo que mereça ser saudado pelos tambores de todas as tribos, de todas as nações.


12 fevereiro 2012

Resumo das manhãs



 Nossos pés descalços na praia descalça caminham esta manhã que mal começa e já nos deu tudo o que pode uma manhã. Um azul luminoso, um vento generoso e um espelho de mar ávido de horizontes. As casas ainda sonolentas jorram pessoas sonolentas em busca dos mais diversos destinos. Mas nossos passos andam alheios a qualquer destino. Tudo o que temos a decidir é o momento da meia volta que nos mostrará o lado da manhã que se ensaia às nossas costas. Pouco importa o nome dos passarinhos que brincam de ir e vir com as lâminas de água que avançam e recuam pela orla. Não sabemos bem o que eles fazem, mas parecem se divertir. Claro que o ritual deve ter uma finalidade para o bem da espécie. Somos nós que brincamos de ver.
Nesta manhã luminosa, somos dois seres despidos de qualquer gravidade. Nossos sentidos e nossa razão estão alheios a qualquer coisa ou acontecimento que exceda os limites deste invólucro de ar, luz e mar. Somos por um instante o casal primordial, anterior a todo mal, todo pecado. E bem melhor seria se assumíssemos a condição dos bichos, imersos na manhã sem a consciência da manhã. Como parte dela, apenas.
Mas somos humanos, meu amor. E sabemos o destino das manhãs. Mas não tentemos prever o destino desta manhã. Deixemos por enquanto que ela nos leve até onde nossos pés possam caminhar. Até onde nossos olhos possam se deixar inundar da sua beleza. Até onde todos os nossos sentidos se espantem com a eterna novidade dos dias que começam.
Foram muitas as manhãs que caminhamos. E muitas delas, em muitos e diferentes lugares, se ofereceram assim ao nosso espanto. E por sermos íntimos das manhãs, sentimos que esta pode muito bem ser vivida como o resumo de todas as manhãs que amanhecemos juntos.

Foto: Malke Maurício



  

07 fevereiro 2012

Parto humanizado




O evento está previsto para 17 de fevereiro. Pode ser antes, pode ser depois. Mais uma vez estou eu à mercê dos caprichos de um parto natural. Desta vez é João que se anuncia. Será o meu primeiro neto homem, o que lhe faz supor certas regalias. Mas, se conheço bem sua irmã mais velha e suas primas, ele não vai se dar tão bem quanto pretende.


A novidade que aprendi enquanto aguardava a chegada de João é que existe uma coisa chamada parto humanizado. Tal novidade consiste em dar prioridade ao bem estar da mãe e do bebê, devendo a equipe médica se adaptar às vicissitudes do parto, em vez de adaptar o parto às suas conveniências de tempo e conforto.


Ora, se chamamos de “humanizada” uma postura tão óbvia quanto esta de colocar a parturiente e seu filho no centro das atenções num momento tão crítico como o de um parto, como devemos chamar os procedimentos que não dispensam semelhantes cuidados? Não vamos mais um vez cair no erro de chamar estas técnicas de animalizadas. Quem já assistiu o parto de algum animal sabe o quanto a natureza é cuidadosa com os seus novos rebentos. Um parto, ou qualquer ato médico que não ponha o paciente no centro de suas atenções, é um ato de desumanidade.


É de causar espanto e indignação o quanto certos procedimentos médicos ignoram totalmente a integridade dos pacientes. A própria super-especialização contribui para que cada especialista cuide apenas do pedaço do corpo que conhece, ignorando que ali, na sua frente, existe um indivíduo com uma história de sofrimento desejoso de ser escutado em suas angústias e incertezas.


Acho ótimo que minha filha tenha escolhido um profissional preocupado no bem estar dos seus pacientes. Mas lamento muito que seja necessário chamar de “humanizado” um ato que deveria ser a coisa mais corriqueira na atenção médica dada a qualquer ser humano.