29 agosto 2009

A quem interessar possa




São dez e pouco da manhã do sábado. A feira está feita, as pequenas providências tomadas, adiou-se o que podia ser adiado. Daqui a pouco abriremos os trabalhos, qualquer que seja o quorum. Se der tempo, apareça.

23 agosto 2009

Manhãnzinha de nada




É uma manhã simples de domingo. Não me promete nada de grandioso, surpreendente. Daqui a pouco vai sair um café, logo mais chegarão os filhos que faltam, virão as netas, talvez algum amigo. Tem cerveja na geladeira e uma promessa de macarrão para o almoço. Aí já será de tarde e a manhã terá cumprido seu ofício: ser uma manhã simples de domingo, projetando uma calma luz no chão imprevisível da semana.

22 agosto 2009

Não posso ir



Gente: por maior que fosse minha boa vontade, não há dedão do pé que resista a uma pancada de prateleira. Foi a maior sangreira. Aí está a foto para provar. Não vou ao Clube do Conto por total impossibilidade de locomoção. Beijos gerais. Rona.

16 agosto 2009

Quando mentem as orelhas




Se o leitor soubesse como são feitas as leis, as lingüiças e as orelhas dos livros, não confiaria em nenhuma delas. Das últimas, pelo menos, tenho um bom exemplo de inconfiabilidade. Trata-se da orelha do livro “Relato de Prócula”, de W. J. Solha. Vou citar para poder ilustrar meus argumentos:
“Sempre houve um mistério na razão da defesa de Jesus feita por Pilatos ante o Sinédrio. E aí, o Padre Martinho Lutero Libório – vigário da paróquia de Pombal, na caatinga paraibana – pergunta-se, depois de fazer o papel do romano na Semana Santa, na capital da Paraíba, se o motivo teria sido, mesmo, um sonho de Cláudia Prócula – mulher do praefectus de Jerusalém – ou algo bem mais poderoso, como o vínculo dele com o Nazareno, agente infiltrado, judeu, mas cidadão de Roma, tal como eram Paulo de Tarso, Flávio Josefo e Filon de Alexandria.

“Este romance inova com essa sua teoria – tão polêmica quanto a do Código da Vinci” – e com a reprodução vívida da até então ignorada vida cultural do interior nordestino, realidade muito distante do universo retratado por obras como Vidas Secas, Fogo Morto ou Grande Sertão:Veredas.”

Saiba o leitor que, depois de ler duas vezes o “Relato de Prócula”, não liguei minimanente para as querelas do autor com as supostas verdades acerca do Cristo histórico. Muito menos considero a teoria do padre Martinho tão polêmica quanto a do best seller davinciano. Para mim, nada disso tem importância e cai para segundo plano quando nos deparamos com a força do personagem principal do romance. Os verdadeiros conflitos do padre Martinho não dizem respeito a questões da história das religiões. O que o padre não consegue superar é o conflito entre sua enorme virilidade sexual e intelectual e os arcaísmos dos dogmas católicos.

O bom mesmo do livro é a viva reconstrução das relações afetivas dos viventes da cidade de Pombal e da fazenda Mundo Novo. Dispensam-se as citações eruditas de livros e filmes, as pretensões filosóficas dos intelectuais do interior. O que nos prende são as paixões represadas, os desejos não ditos, a fome de amor do padre e suas meninas.

Angustiado e culpabilizado por conta da força de seu desejo, o pobre Martinho cai na tentação do suicídio. Mas a poderosa corrente dos amigos, principalmente das grandes mulheres que o cercam, faz com que sua inteligência vença de vez sua culpa e decida viver a plenitude de suas paixões.



Rubens Bentancur, o narrador do romance é, sem nenhum disfarce, o próprio Solha nos prestando contas da refundação de suas raízes na Paraíba. O padre Martinho é o seu alter-ego, aquele que sofre as dores do embate entre o desejo e os dogmas religiosos.

Que o leitor mergulhe sem medo nas páginas caudalosas do “Relato de Prócula”. Se souber navegar com cuidado, vai poder fruir um texto maduro, conduzido com mão segura, produzindo sonoridades que a orelha do livro não ouviu. Como nesta passagem em que o padre Martinho, depois de passar a noite no terraço da casa-sede de sua fazenda agarrado a um livro de memórias de Pôncio Pilatos, levanta-se “ao ouvir os primeiros cocoricós, balidos e mugidos em lugar dos cricrilos, coaxares, além de voos de corujas, morcegos e tetéus...” Isto é pura sonoplastia, esperando o momento em que o livro vire filme. Coisa fácil de fazer pelas mãos plurais do artista W. J Solha.

09 agosto 2009

Ofício paterno





Ouvir
o grito do teu corpo
no escuro.

Salvar
teu corpo dessa morte
prematura.

Colher
teu corpo desmembrado
do naufrágio.

Lançar
teu corpo derrelito
em praia firme.

Reter
o todo do teu corpo
nas retinas.

Rever-me no teu corpo.
Deixar-te com teu corpo
longe de mim.


Imagem obtida em mensagensvirtuais.com.br

06 agosto 2009

Vistam saias, meninas: é agosto





Publico de novo porque gosto do texto e também de agosto.

Há um certo prazer em falar mal de agosto. Dizem que é o mês das bruxas, onde cai o dia das sogras, foi quando morreu Getúlio e costumam ocorrer desgraças políticas. Pouca gente fala bem de agosto.

Quase ninguém se lembra que é o mês do mais belo luar do ano, promovendo encontros e reconciliações entre os já românticos e convertendo ao romantismo alguns indecisos pós-modernos. Em mim, particularmente, o luar de agosto produz um estado intermediário entre uma lânguida melancolia e uma vontade enorme de uivar.

É certo que em alguns anos agosto lembra um velho sombrio, com suas nuvens cinzentas, suas chuvas fora de hora, invadindo maleducadamente com seus miasmas setembro a dentro. Mas num ano como este, agosto merece ser tratado com toda a consideração. Já na primeira semana faz um sol quase de verão, esquentando um pouco a água do mar, levando à praia uma boa safra de mulheres e, vá lá, alguns homens dignos de nota. Só temos que aturar o vento forte, o bom vento de agosto que, se algumas vezes aborrece ao derrubar varais, espalhar jornais ou varrer areais, nos compensa com um dos mais belos espetáculos ao ar livre: a dança das saias.

E não me venham dizer que isto é coisa que só interessa aos homens. Alguma coisa me diz que as mulheres esperam ansiosas por agosto, preparam-se em academias e clínicas de beleza para o encontro com este mês abertamente masculino. E tenho certeza que uma pesquisa de mercado revelaria um forte incremento no comércio de saias ou cortes de tecidos para elas, cremes e óleos para pernas, além de peças íntimas de langerri a serem desvendadas num momento de estudada distração.

Os homens esperam por agosto como a um velho camarada. Um amigo maroto que faz por nós o que mais gostaríamos de fazer em plena rua: levantar as saias das mulheres.E reparem bem no rosto de uma mulher a quem o vento de agosto vai levantar a saia. Há, de início, uma certa expectativa, quase uma ansiedade, um temor de que não sopre vento nenhum e tenha sido em vão todo o preparo, todo o cálculo de chegar naquela esquina no momento em que um homem, ou um grupo de homens, passa atento pela calçada contrária. Logo, sopra o vento. Primeiro, de leve, deslocando os cabelos e fazendo a vítima fechar os olhos numa mescla de vago aborrecimento e satisfação. Quase um agradecimento.Ato contínuo, vem o farfalhar da saia. Aí é necessário que a dona da saia tenha alguma coisa em uma das mãos. Pode ser um sortimento de livros e cadernos, algum pacote não muito volumoso, até sacola de supermercado serve em certos casos. O importante é que apenas uma das mãos fique livre para segurar a saia em um dos lados, deixando o outro ao sabor do vento de agosto e dos olhos dos seus gratos amigos do outro lado da rua. O movimento, brusco mas não tanto, de segurar um dos lados da saia leva a um certo desequilíbrio que faz com que o volume sustentado pela outra mão ameace cair. Nisso, a mão que segurava a saia vai em ajuda à sua irmã, deixando agora todo o campo livre para o trabalho do vento e dos olhos.

Há variações do rito, é certo. A melhor delas é quando agosto apanha com seu vento um bando de mulheres no meio de uma ponte ou numa rua larga, de preferência ladeirosa, em que estejamos todos subindo. Mulheres na frente, como manda a boa educação, homens regulando o passo até alcançar a melhor distância para um visão de conjunto e, finalmente, ele, o ruidoso, o assobiador, o vigoroso e salutar vento de agosto, causando desordem e euforia, quebrando a monotonia das tardes friorentas. Estamos no começo de agosto. Já é tempo, meninas, vistam saias. E deixem brincar com elas o vento de agosto, para o alimento de vossas vaidades e o bem dos nossos olhos. Antes que todos, olhos e vaidades, sejam desviados pelo despudoramento de setembro, escancarando corpos e tornando vulgar o jogo sedutor que agosto sabe tão bem jogar.

(Publicado em Memória curta, 1996)