29 novembro 2008

Pequenina



Ele tomou teu corpo, Pequenina, e usou como alcova de todos os vícios. Ele te seduziu com o engodo da beleza e da juventude, mas não estava só. Trouxe com ele os homens velhos que se serviram de ti sem dó da tua pequenez, do teu desvalimento. Ele era apenas mais um daqueles que há muito tempo te cobrem de sangue e de luto.

Por duas vezes o mandaste embora, Pequenina. Mas ele sempre deu um jeito de ficar. E a raiva do desprezo fez com que viesse à tona o que restava oculto no porão dos vícios.

Teu pequeno corpo minguou mais ainda à sanha dos maus-tratos. Outros tentaram obrigá-lo a ir embora. Mas ele os convenceu de que ainda eras sua posse. E quando já pensavas em descansar e curar tuas feridas, uma nova carga de ódio se abateu sobre ti, pela ousadia de te pensares livre.
E teu corpo pequenino, exausto e arfante, espera indefeso o pontapé que te quebre a última costela.

Ronaldo Monte
Clube do Conto da Paraíba, 29.11.2008
Imagem obtida em: www.parceria.nl

28 novembro 2008

O prêmio no mural




Existem muitas formas de um autor ser premiado. O meu prêmio mais recente me foi dado por uma adolescente do Centro Comunitário de Mandacaru. Quando cheguei para a oficina de leitura, na terça-feira passada, ela me chamou pelo nome completo e me mostrou um painel escrito em letra cursiva. Fui eu que fiz, disse. E se afastou depressa, arisca como sempre. Tive uma emoção muito forte quando vi o fragmento de um texto que escrevi a algum tempo chamado “Consciência mestiça”. E estava lá como parte das atividades da semana da consciência negra:

O que me faz homem não é o lugar em que nasci, não é a cor da minha pele, não são as ondas do meu cabelo. O que nos faz a todos humanos é a linguagem que nos salva do isolamento e da morte. E o que me faz ser este ser humano particular é a língua que falo. Para saber quem sou, não precisa analisar meu sangue, vasculhar meus cromossomos, rotular a cor da minha pele. Basta escutar a língua que falo. E é nesta língua que encontro minha identidade.

A menina era participante do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil – PETI e há algum tempo eu tinha dado dois livros meus à monitora do Programa. Foi do livro de crônicas “Pequeno Caos” que ela tirou o texto.

Das várias maneiras de se receber um prêmio, esta é uma das mais preciosas. Vale para me reafirmar que é necessário continuar escrevendo, pois nunca sabemos que caminhos tomarão os nossos textos. E é uma emoção muito grande encontrar um deles escrito à mão numa cartolina, colado numa parede de um centro comunitário.

20 novembro 2008

Luto e espera




Definitivamente, a vida não é para principiantes. A minha, pelo menos, não é. Não fez nem três dias que perdi um irmão e já me vem a notícia de que vou ganhar mais um neto (ou neta, ainda não dá pra saber). E eu, que mal me introduzia nas sombras do tempo do luto, sou convocado às pressas ao tempo da espera.

O trabalho do luto nos serve para limar as arestas contundentes do morto, esmaecer os tons rascantes de sua índole, até que fique na memória um quadro resumido de suas qualidades, com o qual conviveremos em paz pelo tempo que nos sobra. O luto é uma conta de diminuir.
A espera de um nascimento é, ao contrário, uma conta de somar. A notícia nos coloca frente a uma tela em branco que nos cabe aos poucos preencher com os traços do nosso desejo. O rosto deve ter o contorno suave da mãe, com certos traços mais fortes do pai. Claro que não deve faltar alguma coisa dos avós, detalhes que admiramos nos tios, um fio da beleza de algum parente distante. Daqui a um tempo, vamos saber se é menina ou menino, o que nos exige certas correções no projeto. E ao fim dos breves nove meses, temos que fazer os ajustes finais entre o sonho e a sua realização.

Estava eu, pois, em plena operação de diminuir, quando me atropela a exigência de uma conta de somar. E aqui estou, diminuindo com uma das mãos e somando com a outra. Como um pedreiro contratado para uma demolição e que, mal começa o trabalho, sabe que terá, ao mesmo tempo, de construir uma nova casa no mesmo terreno. Ainda bem que não sou principiante.

Imagem obtida em: www.mexicanbeautygiftshop.com

17 novembro 2008

A vida depois da morte

Para meu irmão Othon Celso

Depois de bem lacrada a sepultura, esgotadas todas as lágrimas possíveis, os que singraram o tempo espesso da vigília têm pressa em sair dali. Cansados da roda em volta do esquife, anseiam pela intimidade de uma mesa, em torno da qual se quer comer e beber em memória do morto.

Pouco importa o sabor da comida improvisada. O que se quer é ouvir as vozes íntimas e em cada uma delas reconhecer um pouco da voz ausente. Pouco a pouco, a conversa vai se afastando das coisas da morte. A gravidade da falta vai aos poucos sendo vencida pelo relato dos pequenos casos, a lembrança dos cacoetes, das frases preferidas que não mais se repetirão.

A trama das palavras realiza uma vez mais o seu milagre. Cada relato revela uma pessoa diferente, vista como pai, avô, irmão, sogro, amigo. O que era um, agora se torna múltiplo. Revive de formas diversas na memória e no coração de cada comensal.

Desfeita a mesa, começa um novo tempo. Lentamente, a densidade da perda irá cedendo espaço para o sentimento leve da presença do ente amado dentro de nós. E desta forma ele partilhará conosco das infinitas surpresas que a vida nos reserva. Esta é a prova da vida após a morte.

09 novembro 2008

Ao animal que vai morrer


Há uma certeza inabalável no olho do animal que vai morrer. Vejam o boi no matadouro, o rato na pata do gato, o homem à margem do Hades.
Há um certo ar de nunca, um quê de último ato, uma antecipação da falta que dali a pouco se fará.
É obsceno se opor a esta certeza. Qualquer piedade é pornográfica. O Animal que vai morrer não nos pede nada. Ele quer apenas que fiquemos aqui, no cais dos sobreviventes, passivos ao desatar dos nós que deixarão fluir a barca de Caronte.
Há uma certa urgência no olho do animal que vai morrer. Ele tem pressa em apagar de vez a visão de nossas faces constritas e piedosas. Pois é esta visão que o impede de nos esquecer e se entregar por inteiro à novidade do nada.


Imagem obtida em : quadradoredondotriangular.blogspot.com

05 novembro 2008

A Cidade de Lau Siqueira










O troar dos tambores do urso, a doçura da flauta e dos pés dos caboclinhos, as ondas suaves da ciranda, o atávico gingar da capoeira e a dança nervosa das ruas louvam ao cidadão Lau Siqueira.


Todas as tribos, todas as vozes livres da Cidade das Acácias vieram acolher o homem que veio das lhanuras de um país sem fronteiras mostrar que as fronteiras não existem.

E ao nome de homem que lembra o ódio e a morte, por certo a Cidade escolherá este outro. O nome do poeta que junta os amantes, combate as misérias do corpo e da alma e constrói um futuro em que música, dança e poesia andem nas ruas de mãos dadas com a gente.

E por um tempo que os relógios não marcam, música dança e poesia habitaram a Câmara Municipal da Cidade de Lau Siqueira. E fomos todos cidadãos de Lau Siqueira, uma cidade feita de palavras e gestos de amor e solidariedade.




Texto sentido
Para Lau Siqueira










Um tênue manto envolve a pele do poeta.
Tecido de palavras ditas e a dizer,
esconde o corpo do poeta à cobiça da morte.
Engodo inconsútil,
finge proteger das asperezas do mundo
mostrando-se flagelo de enigmas
claros e escuros.
O poeta não vê,
não ouve,não cheira,não tateia
nem sente sabor.
O poeta sofre o peso do seu manto
e dele suga as palavras
que matam a sua fome de sentido.
Ronaldo Monte
08.11.2007

02 novembro 2008

Tempo e palavra


Para Waldir Pedrosa Amorim
Sessenta vezes o poeta
deu voltas em torno do sol
em busca da luz
que lhe mostrasse a palavra perdida.
E a cada nova estação
a palavra faltava ao encontro marcado
com o poeta.

Fez também o poeta
vinte e um mil,
oitocentos
e quarenta e oito
voltas em torno de si mesmo.
E a cada metade de luz
em que a palavra ao longe acenava,
sucedia uma metade de sombra
em que ela novamente
se perdia.

Por mais tempo que viva,
restará ao poeta as palavras-migalha
jogadas pelo tempo
como esmola
no seu chapéu de pedinte,
que ele catará ao fim do dia,
ávido de re-encontrar o verbo
que nunca chegou a conhecer.

Ilustração obtida em: terrag2.pbwiki.com