31 dezembro 2008

A espiral do tempo




Alguns pensam que o tempo é uma linha reta. Começa-se num determinado ponto e segue-se em marcha batida para onde nos indica a flecha. Para outros, o tempo é um grande carrossel, em que os cavalinhos tangem infinitamente os mesmos lugares.Cada um tem o direito de pensar o tempo como achar melhor, mais conveniente. Para mim, a melhor imagem do tempo é a da espiral. Como aquelas escadas que sobem como um caracol e dão medo de cair a quem olha pra baixo.Alguns mais cultos chamariam, a escada e a figura geométrica, de helicoidal. Mas não há tempo para sermos cultos: o tempo é uma espiral, e pronto. E o que ganhamos com essa imagem do tempo em espiral? Que vantagem tiramos em subir (ou descer) pelo tempo dando voltas e sentindo vertigens?As vantagens, sugiro eu, são exatamente as voltas e as vertigens. Se o tempo é uma espiral, a cada volta sua não passamos exatamente pelo mesmo lugar. Se estamos subindo, passamos mais acima. Se descemos, passamos mais abaixo. Para cima ou para baixo, haverá sempre uma novidade a nossa espera. Subindo ou descendo, nosso corpo se afetará tanto com o movimento quanto com a novidade. Daí a vertigem, daí a sensação de redemoinho, de mar agitado que o tempo às vezes nos traz.Mas nem sempre é tempo de novidade e vertigem. Existem momentos de calma e repetição que merecemos desfrutar. É um tempo assim que eu desejo para você nas festas de Natal e Ano Novo. Em paz, na sua casa ou fora dela, com as pessoas queridas de sempre.E se alguém ou algo novo se insinuar neste tempo, que esse novo seja acolhido na calma repetição dos momentos de confraternização que aprendemos a viver com nossos antepassados e teimamos em transmitir aos que sobreviverão a nós.

imagem obtida emwww.mat.uc.pt/.../conchas/imagens/helicoidal.png

29 dezembro 2008

Edifício do tempo
















Edificar
pedra sobre pedra

pelo tempo esperar

com o tempo
ver passar a dor
e o que finge ser dor

ver passar o bem
e o seu avesso

o amor
e a sua falta

ver o próprio tempo passar
tombando pedras.

Tempo de novo
pedra sobre pedra
edificar.

Do livro "Tecelagem noturna" (2000).
Ilusttração: Time



26 dezembro 2008

Um poema de Márcia Maia






anti-elegia

para Rona




a dor
sobrepõe-se ao silêncio
quase religioso
do azul sem nuvens
que
opressivo
derrama-se
sobre o vidro da janela

corrói e corrompe
conspurca a beleza do instante

numa concretude impalpável
indizivelmente real



Márcia Maia

Imagem obtida em: olhares.aeiou.pt

22 dezembro 2008

Grávidos de Deus



Mais uma vez vai nascer um menino. Cada um, a seu modo, neste lado do mundo, quer deixar marcado este dia em que se convencionou que o menino vai nascer.
De quem é o menino que nasce? Quem é seu pai, sua mãe? Ele mesmo nos dirá mais tarde: sou o filho do homem. Nasce, pois, de cada um de nós, de nossa humanidade. Isto quer dizer que ele é o que virá depois de nós. O modelo daquilo em que o ser humano se transformará, se tempo nos sobrar para tanto.
Mesmo que daqui a pouco estejamos lamentando sua morte, por nós mesmos decretada e executada, nada impede que agora estejamos contentes com o seu próximo nascimento. Por agora não sabemos nada da nossa maldade. Agora somos puros, somos virgens, inocentes de toda crueldade de que somos capazes. Por enquanto somos inocentes. E neste lapso de memória da matéria corruptível que nos forma corpo e alma, estamos prontos mais uma vez para gerar o menino e esperar que com ele renasçam nossas esperanças.
Esperemos, pois, com a paz possível, que mais uma vez nasça este menino. Façamos de conta que somos bons, que amamos nosso próximo, que cuidamos do planeta em que moramos. E se ele também se diz filho de Deus e nascerá mais uma vez de nós, estamos todos grávidos de Deus. Este é o milagre que se renova a cada ano no ventre da humanidade.


Imagem obtida em:raquel2006.flogbrasil.terra.com.br

20 dezembro 2008

A porta















A maçaneta girou, a porta rangeu e ficou entreaberta. Estava só em casa. Estava só no quarto. Ficou olhando a fresta com uma clara convicção: tinha alguém ali.
Estava só no quarto, estava só em casa, estava só no mundo. A solidão era seu elemento natural. A suposta presença atrás da porta desequilibrava seu modo de ser. Seja lá quem ou o quê estivesse ali, exigia que saísse de sua letargia, do seu alheamento às coisas do mundo.

Era penoso situar-se no lado de lá da fronteira de si. Só sentia segurança da pele pra dentro. E agora, alguém ou algo espreitava, aguardando o menor descuido para entrar de vez no centro do seu refúgio.

Respiração pesada, suor pegajoso, olhos pregados na fresta que lançava um ângulo de luz quarto adentro.
Respiração pesada, suor pegajoso, olhos fechados pelo peso da vigília. A paz do escuro dentro do círculo fechado do sono.
Respiração pesada, suor pegajoso, olhos abertos em susto. A porta toda aberta.

Ninguém nem nada para além do umbral.


Ronaldo Monte - Clube do Conto da Parahyba
20.12.2008

Ilustração: Fábio Cavalcanti

16 dezembro 2008

O olhar como gesto




Está cada vez mais difícil olhar o mundo com nossos próprios olhos. Antes de olharmos o mundo, somos doutrinados a ver apenas o que os meios nos mostram. E os meios nos treinam para ver um mundo ruim, onde a ganância e a maldade dirigem todas as ações humanas. Se quisermos ver o mundo, é preciso, antes, limparmos os olhos de toda a cinza que turva a nossa visão.

Sair para a rua, conversar, andar por aí de olhos e ouvidos abertos. Fugir do lugar comum das opiniões consagradas. Não deixar passar a frase feita que nivela a todos pela medida mais rasa. Não, brasileiro não é preguiçoso. Nem todo político é ladrão. Não, as periferias das cidades não são povoadas por marginais. A grande maioria é gente solidária e batalhadora. Não, as pessoas não gostam de pornografia. Elas se extasiam na presença da poesia.

Superar o lugar comum dos olhares requer uma disposição ao espanto do novo. Requer esforço que nos arranque do ponto de vista caduco e nos ponha noutra posição de visada. Ver como os artistas. Os poetas e os pintores. Abandonar o olhar passivo que recebe o mundo que nos mostram. Exercer o olhar como gesto. O que inventa o mundo enquanto vê.

Ilustração: Flávio Tavares

05 dezembro 2008

Meus prêmios



Acabei de ganhar dois prêmios no Concurso Literário da Cidade do Recife. O primeiro lugar em poesia, com o livro “Onde a minha Rolleiflex?” e o primeiro lugar em ficção, com o romance “Peccata mundi”. Quem vai receber o primeiro prêmio é a minha Amiga Márcia Maia. O segundo, quem vai receber é o meu amigo Geraldo Maciel, o bom e velho Barreto. Nada mais justo, pois foram eles que escreveram os livros. Eu apenas fui premiado.

Há muito tempo sou premiado com o privilégio de participar da lista de correspondência de Márcia Maia. Conheço, pois, os seus poemas muito antes de se transformarem em livros. Fui escolhido por Barreto como um dos primeiros leitores dos originais de “Peccata mundi”, além de ter acesso à ouriversaria dos seus contos nos fins de tarde dos sábados do Clube do Conto.

Os prêmios de Márcia e Barreto não são os únicos que a literatura me deu. Eles fazem parte de um prêmio bem maior. O privilégio de conhecer e conviver com um bando de insanos que, premiados ou não, tecem as palavras com as quais transcendemos a banalidade do mundo.


Ilustração obtida em: www.imagensdahora.com.br