12 abril 2015

20 - O dono do nada


 Almeidinha - O herói de paletó

Um folhetim burocrático

                


                     Quando Dona Marli bateu a porta da repartição, eu tomei um susto, como se tivesse acordado de um pesadelo. Mas aos poucos vou me acostumando ao vazio da sala, à ausência daquelas pessoas que fizeram parte da minha vida por tantos anos. Me chamavam de Almeidinha, de um jeito que eu pensava ser de carinho. Mas agora eu consigo entender o que estava por trás desse diminutivo. Almeidinha, o ninguém; Almeidinha, o servil; Almeidinha, o capacho.
                   Agora que estou só aqui, tenho uma sensação muito grande de paz, de alívio. Esta é a minha fortaleza, onde me sinto protegido de todo o mal que queiram me fazer. Longe daquela que se fazia de minha esposa, livre do Dr. Pacheco e sua empáfia, livre do Ciço e da sua falta de tempo, livre do Joel com sua falsa dor nas costas. Livre também de Dona Marli saindo da sala do chefe com seu sutiã desajeitado, sua boca sangrenta de batom, seu cabelo desalinhado. 
                   Fecho todas as janelas, deixo todas as luzes acesas e caminho lentamente até a sala do Dr. Pacheco. Não, não é mais a sala do Dr. Pacheco. Agora será minha sala. Acendo as luzes, e me sento na poltrona giratória, macia, reclinável que agora é só minha. Experimento me reclinar e botar os pés na mesa, como tantas vezes vi o Dr. Pacheco fazer. Não gostei, achei desconfortável. Desço as pernas, me reclino com as duas mãos cruzadas na nuca. Assim é melhor. Melhor para pensar nas ordens que darei aos meus subordinados, assim que eles cheguem para o trabalho. Sr. Joel, quero aquele relatório pronto ainda hoje de manhã. Sr. Cícero, hoje o senhor vai gastar seu tempo de almoço para pagar minhas contas na lotérica. Sr. Pacheco, traga-me um café e um copo de água gelada. Dona Marli, traga papel e lápis que eu vou ditar uma nova petição ao Diretor Geral.

                   Pronto. Todas as ordens dadas, todas as providências tomadas, tenho todo o tempo livre para pensar na vida. É uma pena que minha vida tenha tão pouca coisa para pensar. De minha infância, só me lembro de minha mãe me chamando para ir à missa com ela, enquanto meus irmãos fugiam para jogar bola. Ela só me deixava em casa quando eu acordava com asma. Aí eu ficava o tempo todo na cama, lendo revista velha e tentando fazer as palavras cruzadas dos jornais. Passava o tempo todo de pijama para não piorar do puxado. Acho que vem daí a mania de usar paletó.
                   As coisas não melhoravam quando ia para a escola. Padre Guido ainda era moço e já era diretor das Escolas Reunidas da Paróquia de Água Fria, o bairro em que eu morava. Ele conhecia minha fama de bom menino que ia à missa quase todo dia e vivia me pedindo para ajudar nas comemorações da Escola. Eu era mofino, desengonçado, não tinha jeito para jogar bola na hora do recreio. Gastava o tempo livre comendo meu pão com goiabada e fazendo palavras cruzadas. É por isso que eu conhecia muitas palavras e conseguia tirar boas notas em Língua Portuguesa. Era por isso também que algumas meninas se aproximavam de mim quando era tempo de exame. Eu não me dava conta na época, mas agora fica claro que elas só se aproximavam de mim para que eu ensinasse a matéria que ia cair na prova. Foi aí que aquela Sandra foi se chegando, tomando meu tempo, impedindo que as outras meninas me procurassem para tirar suas dúvidas. Ela me levava para almoçar na casa dela para que eu fizesse seus deveres de casa depois do almoço. Quando terminava, ela inventava que ia sair com a mãe dela, ou dizia que estava com dor de cabeça e me mandava embora.
                   Mas eu me lembro muito bem do ciúme que ela sentiu quando uma menina rechonchudinha entrou no meio do quarto ano primário. Era a tal Luana que enchia a sala com o seu cheiro de suor quando voltava do recreio. Ela era miudinha, mas era a melhor levantadora de vôlei da escola. Padre Guido gostava muito dela porque ela fazia dança e conhecia muito bem os passos do frevo, do côco, do maracatu e de tudo que era dança popular. E quanto mais ela dançava, mais forte era o cheiro do seu suor.
                   Essa Luana também queria estudar português comigo, mas a tal da Sandra não dava trégua. Grudava em mim na hora do recreio e quando a aula terminava, ela só me largava quando estava perto da minha casa. Mas numa hora de recreio em que Sandra foi no quartinho, Luana chegou perto de mim e perguntou se eu ia estar em casa naquela tarde. Eu disse que sim e ela combinou de ir estudar comigo. Entrei em casa com o coração aos pulos, tomei banho, almocei às pressas e fui para a porta esperar pela menina do cheiro adocicado. Cansei de esperar em pé, sentei-me no batente da porta. Cansei de esperar na porta, fui me sentar na mesa com o caderno de português aberto no dever de casa. Tive que sair da mesa para minha mãe botar a louça da janta. Não jantei e fui pro quarto com um nó me apertando a garganta. Só não chorei porque estava muito cansado de tanto esperar.
                   Do mesmo jeito que estou cansado agora, já quase dormindo sobre os braços cruzados em cima da minha mesa de diretor. Mas vou fazer de tudo para não dormir. Padre Guido garantiu que ela viria me visitar na repartição.  E quando ela chegar, vai me encontrar aqui, único senhor deste universo vazio que ela inundará com o seu cheiro. E o seu cheiro ficará para sempre entranhado no meu paletó.



                                                 FIM   

Um comentário:

CHICO CORDEIRO disse...

Prof. Zé RONALDO

O folhetim do Almeidinhs deve continuar em novas aventuras etc e coisa e tal.

Ce Fini