Almeidinha - o herói de paletó
Um folhetim burocrático
Você
está fazendo tempestade em copo d’água, Sandrinha. Afinal, foi você mesmo quem
provocou tudo isto. Nada disso me assusta. Acho até que a companhia das
mulheres dá muito mais alegria do que a dos homens. Eu mesma não troco por nada
nesta vida o jogo de biriba com minhas amigas e as suas visitas nos domingos de
chuva. O que estraga é que você vem acompanhada daquele traste. Veja só: basta
a companhia de um meio homem como aquele para estragar a nossa felicidade de
mulheres.
Eu
sabia que podia contar com a compreensão de minha mãe, mas nem desconfiava que
ela fosse me entender tanto. Quando cheguei na casa dela, estava chorando,
assustada, aos soluços. Mas à medida em que fui contando o que tinha se
passado, ela fazia uma cara meio decepcionada: há, então foi isso. Pensei que
fosse coisa mais séria.
No
fim, ficamos as duas na cama, ela cuidando de mim, trazendo uma taça de
Martini, umas azeitonas verdes, umas salsichas, até que tudo se reduziu a uns
soluços esparsos e uma fungada de vez em quando. E foi nesse conforto materno
que me entreguei ao sono. Dormi muito, dormi profundo, desse jeito que se dorme
apenas na cama da mãe.
Acordei
meio desorientada e levei algum tempo para colocar a cabeça em ordem. Primeiro,
o corpo informa que eu tinha chorado. O copo vazio avisa que eu tinha bebido.
As cores da cortina fechada e o cheiro de lavanda confirmam que aquele era o
quarto de minha mãe. Só aos poucos a memória foi recuando e os fatos foram se
encaixando. Ainda não tinha completado todo o quadro quando a minha mãe irrompe
no quarto com uma bandeja nas mãos, falando quase infantilmente: um lanchinho
para a filha mais maravilhosa do mundo que se espalhou na cama e não deixou a
mamãe dormir. Senti uma angústia enorme e uma vontade louca de sair correndo
dali.
Que
horas são, meu Deus, quase dez horas e eu fora de casa. Preciso ir, abrir
aquela porta e sentir toda a raiva que sempre me dá quando estou perto daquele
homem. Preciso dessa raiva para não lembrar do que aconteceu comigo neste dia.
Preciso entrar nesta sala e ver que o sofá já está guarnecido com o lençol de
solteiro. Como um bicho bem treinado, ele sabe que é ali que vai dormir mais
uma vez.
No banheiro, ele deve estar no
banheiro vestindo aquele pijama que o deixa mais ainda parecido com um palhaço.
Mas a luz do banheiro está apagada, a porta semi-aberta. A cozinha e a área de
serviço também estão escuras. No quarto, ele deve estar no quarto se preparando
para dormir no sofá.
Meti
a mão na maçaneta, mas a porta do quarto não abriu. Estava fechada por dentro.
A luz do quarto também estava apagada. E eu reconhecia aquele ressonar de
asmático por trás da porta. O pânico começou a tomar conta de mim. Fora do meu
quarto, da minha toca, da minha fortaleza eu me sentia indefesa, presa fácil de
todas as feras que o medo me traria de dentro da noite.
Almeida,
abra esta porta, Almeida. Abra logo, senão eu boto ela abaixo. Você não está
doido de me deixar aqui do lado de fora. Abra e vá dormir no sofá, que sempre
foi o seu lugar. Abra esta porta, Almeida. Por favor. Você sabe que eu não sei
dormir fora da minha cama. Pelo amor de Deus, Almeida. Você sabe que eu tenho
medo de dormir fora do quarto. Na sala não, Almeidinha. Sozinha na sala, não.
Eu vou passar a noite sem dormir.
Não
sei o que pode ter dado neste homem. Onde ele foi arranjar coragem para me
desafiar assim. Pela primeira vez ele se comporta com firmeza, a firmeza que eu
tanto esperei que ele tivesse com as coisas da casa e da repartição. De um
homem assim eu era capaz de gostar. Mas agora não posso mais. Agora meu coração
se deslocou, virou de cabeça pra baixo e eu não vou mais desobedecer ao meu
coração. Vou dormir no sofá, sim. Mas não vou dormir só. Apanho o paletó ainda
úmido no varal e fico fuçando as suas dobras em busca de algum vestígio do
cheiro de Jackeline. Mas a única coisa que encontro é o cheiro forte de sabão
e, aqui e ali, uma pitada da inhaca do Almeidinha.
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