Almeidinha - o herói de paletó
Um folhetim burocrático
O
cheiro estava expulso da casa, mas teimava em recender dentro de mim. Ainda era
cedo, não adiantava ir para a cama. Qualquer lugar fora do quarto estava
impregnado com a presença daquele Almeida que não se aquietava no sofá. A porta
da rua me prometia uma saída. Além dela, havia toda uma cidade tomada pelo
cheiro que me teimava na lembrança. E eu sabia exatamente o lugar da cidade
onde encontrar a sua fonte. Passei pelo Almeida como uma ladra, abri a porta
como uma mágica, me lancei na rua como um animal. Chamei um taxi.
Desta
vez subi a escada sem hesitação. Varei a cortina de conchas com a determinação
de uma freguesa antiga. Olhei para o balcão, mas Jackeline não estava lá.
Quando a vista se acostumou à penumbra, vi que ela estava em uma mesa de canto,
com uma das mãos pousada na mão de outra mulher mais nova que ela. Antes que
ela me notasse, ali mesmo da porta passeei os olhos por toda a sala. Pelo que
minha mãe falava e minhas amigas comentavam, mulher que gosta de mulher tem
jeito de homem. Mas ali, na Ilha de Lesbos, nenhuma daquelas mulheres merecia
ser chamada de sapatão. Umas mais bonitas, outras mais feiinhas, umas mais
atrevidas, outras mais recatadas, todas elas guardavam um ar de feminilidade,
demonstravam um companheirismo, uma espécie de carinho coletivo que eu nunca
tinha visto em nenhum outro lugar.
Meu
olhar ainda vagava pela sala quando ouvi a voz de Jackeline quase dentro do meu
ouvido: eu sabia que você ia voltar. Uma espécie de raio percorreu meu corpo,
uma onda de gelo eriçou todos os meus pelos, o perfume ansiado se entranhou por
todos os meus poros.
Jackeline
me levou pela mão para a mesa onde a moça ainda estava sentada. Nos apresentou,
disse para a outra que eu era uma amiga de infância que estava de passagem pela
cidade. Queria que eu ficasse na mesa delas naquela noite.
A
moça apertou minha mão com um certo desdém e se negou ao beijo convencional de
cumprimento. Pediu licença e se retirou meio apressada. Parece que era isto
mesmo que Jackeline esperava que ela fizesse.
Lá
estava eu, sentada naquela mesinha fracamente iluminada, tendo ao meu lado uma
mulher de quem eu não sabia mais do que o nome. Ao meu lado e já com uma mão
sobre a minha, perguntou se eu não bebia alguma coisa. Um Martine branco doce,
respondi e me lembrei dos domingos na casa da minha mãe. Me dei conta de que
nunca tinha bebido com outra pessoa além de minha mãe. O traste do Almeida mal
bebia água. E minhas amigas bebiam muito, de um jeito que me desagradava. Agora
uma outra mulher me oferece um drinque. E de Martine em Martine fui ficando
lânguida, esmorecida, adormecida e não sei como fui acordar numa cama do quarto
de um apartamento minúsculo, no mesmo condomínio de minha mãe.
Suei
frio, gelei e tomei um susto quando a porta do quarto se abriu e por ela entrou
uma outra Jackeline, com um robe de seda cinza, os cabelos presos num coque e
uma bandeja nas mãos: o café da manhã para uma mulher maravilhosa que não me
deixou dormir nem um pouquinho esta madrugada. Disse isto enquanto arriava a
badeja em minha frente, aproveitando meu estado de choque para me dar um beijo
na boca.
Entrei em pânico, apanhei
minhas roupas e saí correndo direto para o banheiro. Me vesti apressada e me
arranquei dali afastando a outra que tentava evitar que eu abrisse a porta da
sala. Desembalei pela escada e apressei o passo sem dar ouvidos aos gritos que
vinham da janela de Jackeline. Já era manhã alta. Minha mãe devia estar em
casa.
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