Um folhetim burocrático
05 - A sogra do Almeidinha
Nos
domingos em que não faz sol, minha senhora me convida para visitar a mãe dela.
Não é bem um convite, é mais uma ordem. Na verdade, nem é uma ordem. É uma
espécie de fatalidade que eu vou adivinhando desde a véspera, quando ela começa
com certos preparativos. Faz uma torta de abacaxi - que a mãe dela adora-, e
deixa pronta na geladeira. Já deixa estendido no espaldar de uma cadeira da
sala um robezinho leve, daqueles sem mangas, feitos no Ceará, para trocar
quando chegar lá. Diz que é o único lugar onde se sente realmente em casa. Compra também
de véspera uma garrafa de Martini branco doce, única bebida que sua mãe tolera.
Faz tempo que deixou de tomar bebidas fortes. É natural também que leve um pote
de azeitonas verdes e uma lata de salsichas daquelas pequenas, próprias para
tira-gosto.
Quando
eu volto da missa, já encontro ela impaciente, de pé, com uma sacola enorme na
mão. Aponta com o queixo para a torta, ainda na forma, embrulhada com um pano
de prato com dois nós na parte de cima. Ajeito a torta em um dos braços e com o
outro pego o guarda-chuva. Nunca se sabe quando vai chover nesses domingos
cinzentos. Trabalho mesmo é conseguir fechar a porta da casa com as duas mãos
ocupadas. Minha senhora já vai quase dobrando a esquina, em direção ao ponto do
ônibus.
Não
gosto muito de contar vantagem, mas acho que ninguém carrega uma torta com mais
competência do que eu. Não somente competência, mas também uma certa elegância.
Eu mesmo gostaria de me ver de longe, com o guarda-chuva pendurado no meio do
antebraço esquerdo, as duas mãos um pouco avançadas do corpo segurando a torta
como um vassalo conduz uma almofada com a coroa real.
Chegamos,
enfim, ao prédio da minha sogra. Só mais dois andares acima e logo seremos
recebidos por aquela senhora indefinidamente situada entre os sessenta e os
setenta, um short branco mal cobrindo a flacidez das coxas e uma blusa esvoaçante
de seda oncinha, com um decote em nada devedor ao da filha. Beijam-se e
abraçam-se como se tivessem chegado da guerra e mal abrem espaço para que eu
passe e deposite a torta na pequena mesa da ínfima sala.
Enquanto
eu caminho entre os poucos móveis para descansar os braços, elas duas se
instalam na minúscula varanda que dá para a parede dos fundos do prédio
vizinho. Eu já sei o que devo fazer: tirar o gelo, abrir o Martini, levar os
cálices e servir as azeitonas e as salsichas.
E
esse aí, continua na mesma? É o jeito dela se interessar por mim. Nunca fala
diretamente comigo, nem fala meu nome pra minha senhora. É sempre “esse aí” ou,
quando o Martini já está fazendo efeito, “esse que se diz teu marido”.
Eu até
gosto de ficar de fora da conversa delas. Levo sempre meu livrinho de palavras
cruzadas e fico ali, em paz, sabendo de cor e salteado que o rio da Itália com
duas letras é Pó e que o símbolo do chumbo é Pb. Só sinto falta do meu Pequeno
Dicionário da Língua Portuguesa para conferir as respostas mais difíceis.
Detesto ter que rasurar um jogo de palavras cruzadas.
Pergunta
a ele se já posso botar o almoço. Pode sim, ele pode muito bem deixar esse
vício para mais tarde. É assim que as duas decidem sair cambaleando em direção
à cozinha, enquanto eu boto a mesa para quatro. Quatro sim, pois quando ouve o
barulho dos talheres, um simpático pequinês, com um lacinho de fita pregado na
cabeça, sai do quarto e vem se aboletar numa das cadeiras, rosnando pra mim. Terminado
o almoço, a infalível galinha à cabidela com farofa e macarrão, regada a duas
ou três latinhas de cerveja, elas se recolhem no quarto e eu fico ali pela
sala, esperando a hora do Faustão.
Já é
de noitinha quando volto a ouvir o falatório no quarto. Sei que minha senhora
está trocando o robezinho pela roupa de domingo. Logo-logo ela vai sair dizendo
que está atrasada, já quase perdendo a hora do Fantástico. Minha sogra, ainda
sonolenta, pede pra filha me dizer que, se não fosse a pressa dela, até passava
um cafezinho pra mim. Eu não digo nada, mas sorrio agradecido. É nessas horas
que sinto que ela é quase uma mãe pra mim.
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