Um folhetim burocrático
06 - Almeidinha e a novata
O
Dr. Pacheco tem muita consideração por mim. Um dia ele me chamou em sua sala,
me mandou sentar e disse que precisava muito da minha compreensão. Era coisa
simples: uma parenta sua estava com um probleminha na repartição em que
trabalhava. Ela era auxiliar de tesouraria e andaram levantando uns falsos
sobre a idoneidade dela. Por isso, ela precisava passar um tempinho longe das
fofocas dos colegas e, para ajudá-la, Dr. Pacheco sugeriu que pedisse uma
transferência provisória para a nossa repartição. Isso, claro, ia ficar só
entre a gente. O resto do pessoal não precisava ficar sabendo de nada. Era só
eu desconversar se alguém quisesse entrar em detalhes sobre a presença da nova
funcionária. Ele mesmo se encarregaria de dar uma informação geral sobre a
rápida permanência da moça entre nós. Só mais uma coisinha, falou Dr. Pacheco.
Queria que o senhor cedesse o seu birô para ela guardar suas coisas. O senhor
sabe, mulher traz muita tralha para o trabalho. Como é por pouco tempo, o
senhor pode muito bem ocupar somente a mesinha de apoio da sua máquina de
datilografia. Faça isso por mim, Seu Almeidinha. Como já disse, vai ser por
pouco tempo. É só a poeira baixar lá na repartição dela.
No
outro dia, lá pela metade do primeiro expediente, a repartição é invadida por
uma mulher de idade meio indefinida, equilibrada em duas longas agulhas
parecidas com sapatos, uma faixa estreita de tecido listrado de preto e branco
sugerindo uma saia e uma blusa de oncinha tentando cobrir uma fartura de seios
ameaçando para já um desabamento. Nos cabelos forçosamente louros se enfiavam
as hastes de uns óculos escuros enormes que a deixavam parecida com uma mosca. Não
sei não, mas tudo aquilo me pareceu um ato de incontinência pública e
escandalosa, digna de punição pelo que eu conheço do direito administrativo. E
esta impressão aumentou quando ela fez ecoar, ainda da porta, por toda a
repartição: Alôôô. Eu sou Jackeline, a nova coleguinha de vocês. Mas podem me
chamar de Jackie. Por favor, onde posso encontrar o Dr. Pacheco?
O
Ciço, que é o contador, logo, a maior autoridade depois do Dr. Pacheco,
levantou-se para dar as boas vindas à nova colega e se ofereceu a acompanhá-la
até a sala do chefe. Atrás dela, ia apresentando os colegas enquanto fazia uma
primeira avaliação do conjunto da obra. Precisava ver a cara de Dona Marli
apertando a mão da recém chegada. Mal abriu a porta para ela entrar na sala do
Dr. Pacheco.
Os
primeiros dias se passavam mais ou menos assim: Dona Jackeline chegava por
volta das dez da manhã, passava sem falar por Dona Marli e entrava na sala do
Dr. Pacheco. Saía de lá uma meia hora depois, com umas mechas de cabelo fora do
lugar e o sutiã meio desequilibrado. Como minha mesinha de datilografia ficava
do lado do corredor, junto do meu antigo birô, ela tinha de passar por trás de
mim, se apertando entre minha cadeira e a parede dos fundos da sala para descansar
um pouco antes do fim do expediente.
Mesmo
me vendo abarrotado de serviço, Dona Jackeline vivia puxando conversa. Queria
saber sobre minha vida, se eu era bem casado, se minha mulher trabalhava, que
esse negócio de mulher viver em casa era coisa do século passado. Tive de dizer
a ela que minha senhora não era nenhuma desocupada. Era promotora de vendas de
uma marca famosa de bijuteria, uma dessas que fazem propaganda na televisão.
Por isso ela não tinha muito tempo para cuidar de mim como gostaria. Ela
escutava com um sorrisinho de quem não está acreditando muito no que ouvia.
Chegou até a dizer: puxa, Almeidinha, você precisa de uma mulher que cuide
melhor de você. E pousou uma mão caridosa sobre a minha. Com o tempo, ela
passou a se levantar com mais freqüência e amassar minhas costas com aquela
barriguinha macia, deixando meu paletó com um cheiro leve de perfume francês.
Não
sei o que estava acontecendo comigo. Chegava na repartição e ficava impaciente
esperando que desse dez horas da manhã. Errava mais na datilografia, gaguejava
ao atender as chamadas de interfone do Dr. Pacheco. Cheguei até a sentir uma ponta de tristeza
quando o chefe me chamou e disse que eu já podia retomar o meu birô. As coisas
tinham esfriado lá na repartição de Dona Jackeline e ela não precisava mais
ficar com a gente. Melhor para o senhor, não é, Almeidinha? Melhor para o senhor.
Nenhum comentário:
Postar um comentário