Um folhetim burocrático
09 - Crime? Castigo?
Tudo
o que fiz na repartição deu errado depois da minha conversa com Padre Guido. Eu
só pensava em chegar em casa, tomar meu banho, comer apressado o prato feito
que sempre me espera no forno, tomar o
resto de café da garrafa térmica, me certificar que a porta do quarto está
trancada e me jogar no sofá abraçado ao paletó. Claro que demorei a dormir,
pois me atormentava com o pecado que me visitaria em sonho e me faria sair
correndo de madrugada em busca de absolvição.
Não
sei como foi minha noite, nem lembro do que sonhei. O pavor tomou conta de mim
quando acordei e não encontrei meu paletó. Olhei em baixo do sofá, esfreguei os
olhos para olhar melhor em volta da sala e nada. Corri para o banheiro, podia
ter esquecido lá. Também nada. Quase instintivamente, atravessei a cozinha e
parei estatelado no vão da área de serviço. Meu paletó estava lá, pendurado no
varal, ainda pingando no chão.
Não precisava procurar pela casa. Já sabia que minha esposa
tinha saído logo depois de ter lavado me paletó. Não me importava para onde ela
tinha ido. Tudo que me afligia no momento era não poder ir trabalhar naquele
dia. O outro paletó que eu tinha não combinava com nenhuma das minhas calças. E
se tem coisa que não tolero é um funcionário público com paletó e calças
desencontrados. Acho falta de respeito com a repartição. Meus colegas trabalham
em manga de camisa, mas isto estava fora de cogitação. Já disse que me sinto nu
sem paletó.
Foi
um tormento ter de sair para telefonar avisando que ia faltar ao trabalho.
Tinha que ir na farmácia, pois não tenho celular e na minha casa não tem
telefone fixo. E nunca ninguém naquele bairro jamais tinha me visto sem paletó.
Iam logo pensar que alguma coisa muito séria havia acontecido comigo. Não sei
como uma idéia salvadora pode me ocorrer numa agonia daquela. Lembrei que minha
senhora tinha um casaco de lã azul marinho que ficava um pouco folgado nela.
Ficou meio apertado em mim, mas me deu uma sensação de conforto e proteção de
que tanto precisava naquela hora.
Quem
atendeu foi Dona Marli, a secretária. O que aconteceu, Seu Almeidinha? O senhor
nunca faltou um dia de trabalho. Nem atrasado o senhor nunca chegou. A gente já
estava pensando que o senhor tinha morrido.
Tive
um contratempo incomensurável, Dona Marli. Disse isso com a voz embargada, com
um nó na garganta. Não podia adiantar mais nada sobre tal contratempo. Nem
podia inventar uma mentira. Vocês sabem que sou católico, não minto. Dona Marli
deve ter entendido meu embaraço. Disse para que eu ficasse tranqüilo que ela ia
avisar ao Dr. Pacheco.
Eu
já ia desligar o telefone quando ela acrescentou: foi realmente muito ruim o
senhor ter faltado, Seu Almeidinha. Teve uma pessoa que passou aqui bem cedinho
e perguntou pelo senhor. Quem pode ter sido, Dona Marli. Teria sido minha
senhora? Muito pelo contrário, Seu Almeidinha. Foi a sua namorada, Dona Mosca.
Quer dizer, Dona Jackeline. Fazia pena ver o desapontamento dela quando
encontrou o seu lugar vazio.
Deixei
cair o telefone no gancho e saí sem agradecer ao pessoal da farmácia. Fui me
arrastando em direção à igreja. Só Padre Guido poderia dizer o que estava
acontecendo comigo.
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