Nos idos de 1991-92, o professor Rubem Alves oferecia um
seminário sobre “Temas avançados da filosofia da educação” na pós-graduação em
Educação da Unicamp. As tardes das sextas-feiras eram sagradas para mim e
Glória. Eram duas horas do mais puro encantamento, ouvindo aquele sábio versar
sobre os mais vários assuntos, na companhia permanente da poesia. Cecília,
Drummond, Clarisse, Pessoa, Adélia, Bandeira,Paulo Paes e muitos outros mestres da poesia
e da prosa nos acompanhavam numa aventura sem rumo aparente que nos levava à
reflexão e ao compartilhamento da sabedoria.
O texto que se segue foi o que entreguei a Rubem Alves como
trabalho final de um dos seus seminários. Com ele, tentei condensar as
passagens mais importantes das nossas reflexões. A prosa poética foi a melhor
opção que encontrei para demonstrar o que aprendi com aquele professor de
professores. Modéstia a parte, ele me deu o conceito “A”.
O verso do mundo
No princípio
era o verso, as entranhas do mundo a céu aberto. O pai e a mãe do homem dormiam
na sombra do tempo.
O mito. A
miragem. A sedução das origens douradas. Palavra. O logos brotava da fonte
divina, formando regatos na voz do poeta, pelas musas começando a cantar o
início do mundo.
Com o peso do
tempo, o verso se fez carne e desceu ao mundo para habitar entre os homens,
partilhar a miséria dos homens, se danar com os homens na eterna busca do tempo
perdido, do mito perdido, das delícias do verso perdido.
Espinho na
carne, histericamente pedindo sentido, nunca mais o verso brotaria livre da boca
dos homens. Entre o verso e a boca, milhões de represas retendo a luz, deixando
escapar as sombras do não dito. Nunca mais o verso, lisa superfície da fala sem
mácula. Nunca mais.
Inverso,
antiverso, a prosa do mundo impõe seu império. Proibida a busca das origens, o
peso da estrutura esmaga o sonho. Soberana, a história cria os homens, inventa
o mundo isento de desejos. Fetos programados sem escolhas. Máquina, projeto,
mecanismo digital na bomba inteligente com olhos de ver, como os de Deus. O só
sentido da morte.
Mas a história
se distrai e deixa viva num canto a outra versão. Deixa viva a fala do poeta,
do profeta que anuncia o retorno do verso. O poeta, o perverso, o que segue o
caminho contrário da história. O que volta ao mito, o que busca a fonte. O que
se dilacera na sombra em busca da antiga luz.
A poesia é
cura. Na voz do poeta a carne se dissolve em sentido. A nova palavra no lugar
do sintoma. A vertigem dos sons no lugar da doença. O que eu quero dizer é o
que eu digo querer.
Foda-se a prosa
do mundo. O poeta, o perverso, busca o verso do mundo. Busca uma canção que
revele o encanto do mundo. Um mundo sem deus, sem homens, sem história. Um
mundo possível de todos os sonhos. Um mundo em que a fronha, suporte do sonho,
possa escolher um nome mais belo que o seu nome.
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