Almeidinha - o herói de paletó
Um folhetim burocrático
Deixemos
o nosso herói caminhar heroicamente para mais um dia de trabalho que, ele sabe,
não será dos mais tranqüilos. Vamos voltar dois dias em nossa história para
acompanhar os passos da senhora do Almeidinha. Antes, porém, precisamos saber
que ela se chama Sandra e, ao contrário do que possa parecer, se ocupa com
outras coisas além de transformar a vida do Almeidinha num inferno.
Sandra
tinha passado o dia trabalhando muito. Mesmo que só tenha se levantado da cama
depois de ter certeza de que Almeidinha já havia saído para o trabalho, ela fez
o almoço, guardou um prato no forno com o jantar do marido e saiu para visitar
suas clientes de bijuterias. Passou na casa da mãe para falar um pouco mal do
marido, mas não ficou para almoçar. Comeu em casa e se deitou um pouco para uma
soneca. Depois de assistir a sessão da tarde, saiu da cama e arranjou um pouco
de coragem para varrer a casa. Estava justamente passando a vassoura na sala
quando a porta se abriu, Almeidinha entrou e um cheiro estranho entrou com ele.
Vamos deixar que a própria Sandra conte o que aconteceu naquele princípio de
noite.
Que
cheiro é esse, perguntei, já com o cabo da vassoura pronto para acertar a
cabeça do meu marido. Ele se fez de desentendido e me disse que não sabia de
que cheiro eu estava falando, que não tinha pegado nem se encostado em nada que
cheirasse mal.
Não
se faça de besta, berrei, já com o cabo da vassoura amassando o nariz dele.
Isto é cheiro de mulher. Me interessa muito saber que tipo de mulher é capaz de
se esfregar em um traste como você.
Enquanto
ele ficava com aquela cara de bobo procurando uma resposta para me dar, o
cheiro que vinha do seu paletó me levou para muito longe, para um tempo antigo,
tempo em que estudava no grupo escolar. Agora o cheiro vinha de uma colega que
sentava em minha frente. Todo dia, depois do recreio, ela entrava afogueada e
inundava a sala com aquela quase-catinga agridoce que tirava toda a minha
concentração nas coisas sem graça que a professora falava.
Afastei
com raiva aquela lembrança e, com mais raiva ainda, berrei: Almeida, eu estou
falando com você. De quem é esse perfume. Sabia que a sua fé católica não o
deixaria mentir. Logo logo eu ia saber o nome da dona daquele cheiro. É de Dona
Jackeline, ele respondeu. Uma colega nova da repartição. E a partir daquele
instante uma idéia fixa implantou-se em minha cabeça. Encontrar essa tal
Jackeline e sentir novamente aquele cheiro que carregava escondido em minha
memória.
Esperei
que meu marido entrasse no banheiro e corri para o quarto. De lá mesmo joguei o
lençol de solteiro em cima do sofá da sala e tranquei a porta. Mesmo com a luz
apagada, passei a noite em claro, ouvindo o Almeidinha se virar no sofá,
resmungando umas coisas que não consegui entender.
Esperei
Almeida sair de casa para passar um café forte e tentar me recuperar da noite
em claro. Passei um bom tempo mexendo o café, entretida com o barulhinho da
colher no fundo da xícara, uma perna dobrada com o pé forçando o assento da
cadeira, tentando me livrar da lembrança do cheiro que meu marido tinha trazido
para dentro de casa.
Pensei em voltar para a cama, mas alguma coisa
me levou para a rua. Não visitei nenhuma cliente, nem fui para a casa da minha
mãe. Saí zanzando pelas ruas do bairro e fui me distanciando em direção ao
centro da cidade. Não sabia muito bem para onde ia. Sabia porém que meus passos
me impeliam para algum lugar em que um cheiro antigo me esperava. Era ao
encontro desse cheiro que caminhava.
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