01 – Godofredo, Almeida, Almeidinha
Minha
senhora se dá ao respeito. Na intimidade, ela me chama pelo nome de batismo:
Godofredo. Mas na frente dos outros, ela me chama de Almeida. Quando está com
raiva, ela grita Almeida. Basta eu chegar em casa sem o pão, basta eu sair sem
deixar o dinheiro do açougue, é matemático. Ela grita Almeida. Ela é de lundum.
Tem noite em que manda: Almeida, vá dormir no sofá. Eu nem pergunto por que.
Pego o travesseiro e um lençol de solteiro e passo a noite suando na sala. O
ventilador fica no quarto com ela. Tem sábado que ela inventa um briga por nada
e sai batendo a porta. Nessas horas, nem de Almeida ela me chama.
Mas
o que eu gosto mesmo é de ser Almeidinha. É como me chamam os colegas da repartição.
Colegas, não. Quase irmãos. Tem o Ciço que é contador, tem o Joel, que é
escriturário como eu e tem a Dona Marli, secretária do Dr. Pacheco, nosso chefe. O que gosto deles é
que me dão muito valor. Vivem elogiando minha capacidade de compreensão e
disposição para prestar qualquer favor, sem medir tempo ou esforço.
O
Ciço vive cansado, coitado. Se acaba de trabalhar e nunca tem tempo de pagar
suas contas. Sei que, se ele pudesse, ele mesmo ia ao banco, à lotérica. Por
isso eu nunca me nego quando ele pede e tiro meu tempo de almoço para pagar as
contas dele.
O
Joel, pobrezinho, sofre de dor nas costas e não consegue passar muito tempo
sentado no computador. De vez em quando dá uma saidinha para estirar a coluna e
me pede para dar conta dos ofícios que ele não consegue digitar. Faço com
satisfação, pois sei como é difícil ficar sentado muito tempo com as costas
doendo.
Dona
Marli é a que menos me dá trabalho. Também fica muito difícil pra mim fazer o
que ela faz. Lixa as unhas, passa esmalte, passa batom e vive ajeitando o sutiã
e arrumando o cabelo. Principalmente quando sai da sala do Dr. Pacheco.
O
Dr. Pacheco, esse, é uma figura imponente. Entra na repartição por uma porta só
dele e passa pelos funcionários com a cabeça levantada, nos olhando por baixo
dos olhos. É meio gorducho e tem uma papada denunciadora dos anos que os
cabelos pintados querem esconder. O rastro de lavanda que deixa entre os birôs
demora a desaparecer. Dona Marli o recebe de pé, curvada como uma gueixa,
segurando a maçaneta da porta já aberta e entra na sala logo atrás do chefe. Sai
meia hora depois com umas mechas de cabelo fora do lugar e o sutiã meio
desequilibrado. Pra não dizer que não me pede nada, pede que eu lhe traga um
copo d’água. Não é pra menos, coitada, tão afogueada que sai da sala do Dr.
Pacheco.
Quem
chega na repartição estranha ao me ver sentado num birô no fundo da sala,
batucando numa velha Olivetti, daquelas grandes, de cilindro longo. Já estou
cansado de ter que explicar porque eu não tenho computador. Eu tinha, até o dia
em que Dr. Pacheco
me chamou na sua sala e apelou para o meu espírito desprendido e altruísta. Sua
filha Suellen precisava fazer um trabalho para a escola e tinha que pesquisar
na internet. Acontece que o computador dela deu pau, ele disse, e a pobrezinha estava
inconsolável, com medo de ser reprovada. O trabalho era para amanhã. Depois de
amanhã, sem falta, Dr. Pacheco traria o computador de volta. Tinha certeza de
que o bom e velho Almeidinha não faria questão de passar um dia ou dois usando
a Olivetti velha de guerra que nunca deu pau nem deixou cair o sistema.
Acontece
que já faz dois meses que Dr. Pacheco levou o meu computador. A primeira e
única vez que lembrei a ele, me olhou com um desdém esmagador e me indicou com
o queixo a porta da sala por onde eu saí apressado e morto de vergonha. O pior de tudo é que eu sabia que ele estava infringindo o artigo 100 do Código Civil. Lá está escrito que os bens públicos são inalienáveis enquanto conservarem a sua qualificação. E o meu computador ainda estava muito bem qualificado. O Dr. Pacheco não podia ter esquecido o artigo 100 do Código Civil.
Esse
é o único problema que eu tenho na repartição. Pra se vingar do meu desaforo,
Dr. Pacheco me dá muito mais trabalho do que ao Joel. E o Joel, coitado, com
aquela dor nas costas, sempre me deixa alguma coisa para fazer no lugar dele.
Uma vez pedi para usar o computador dele, mas ele ponderou que um PC era um
objeto de uso pessoal, como o próprio nome sugeria: personal computer. E se eu danificasse o equipamento, como ele ia
se explicar com o Dr. Pacheco? Melhor não, Almeidinha. Para o seu próprio bem,
melhor não.
3 comentários:
Genial, Doc. Tem certeza de que esse Almeidinha não sou - ou fui - eu?
W. J. Solha
Bacana, Rona! Isso me inspira um curta metragem. Abraços
Genial, Rona! Sempre tive essa visão do amanuense público, sem prazeres, sem sofrimento... Isso inspira um curta metragem! Abraços
Postar um comentário