William Costa
Sem
desprezar a consistência poética, científica e filosófica de Heráclito, entendo
que são uma única água as águas que banham este mundo em ciclos imemoriais -
incontáveis idas e vindas ao Céu e à Terra. Urano e Gaia unindo, através da
transparente substância, o que Cronos separou.
Os ventos
e a água salgada escarificam e lavam a caveira encravada na rocha, livrando de
algas e conchas a caixa craniana. Na verdade, trazem de longínquos lugares, e
as escondem na tétrica figura, histórias da gênese do mundo. Encoste-se ali a
orelha esquerda, e surpreender-se-á com o olvido.
Aportam,
desse modo, em nossas praias, sopradas pelos zéfiros que varrem o Oceano Único,
histórias do Mediterrâneo - braço atlântico estendido a Oriente. Felizmente,
Éolo gosta de histórias, e não de segredos. Por isto, domou os ventos,
transformando-os em mensageiros, para a salvação dos mitos.
Ninguém
caminha impunemente entre o Atlântico e as Falésias do Cabo Branco. A memória
do tempo sobrevive nesta assombrosa paisagem. Portanto um simples tronco seco
de madeira, preso nas pedras, pode dar corpo e alma ao mito, que não se entrega
e permanece em luta contra o esquecimento.
O poeta vê
coisas para as quais os mortais comuns estão cegos. Todos passaram por Cila,
mas não a viram, embora reverberasse nas encostas o silêncio – o mais eloquente
dos gritos. Sem nada pronunciar, a bela ninfa, que a enciumada Circe
transformou em monstro, inundou o bardo de palavras, montando o poema.
Cila era
tronco por fora e um rio por dentro. Deste fio d’água subterrâneo, pelo qual
escorrem o tempo e a memória, depende a sua sobrevivência. É preciso mais que
olhos de lince para transfixar o objeto e contemplar-lhe o âmago. Faz-se
necessário possuir os raios X da poesia, para enxergar o que a casca oculta.
A trágica
cilada, que já fora cantada pelos célebres aedos de Grécia e Itália, retorna,
renovada, nos versos surpreendentes do poeta de Alagoas. Somos todos odisseus.
Carecemos de ouvir histórias, ou as versões da mesma história, para suportar
melhor a dura jornada, que todos sabemos aonde vai terminar.
Ouçam o
canto moderno do poeta alagoano. Que pujante lamento pela condição humana do
mito. Que gesto amoroso, este de solidarizar-se com um ser que, num ato suicida
para além da imaginação, se desgarra da narrativa e tenta chegar viva à praia
ocidental, para, inútil, reivindicar o fim de sua agonia.
Profético,
o poeta, dando voz ao Atlântico, anuncia, pela via do esquecimento (talvez a
maior dentre todas as traições humanas), o ansiado descanso para a ninfa que
Glauco tanto ama. Seca a memória dos homens, é verdade, poeta! Mas livros como Cila reterão a
gota, reiniciando o ciclo, perpetuando o mito.
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