Eu tenho medo de alma, não gosto de filme de vampiro, não durmo com o pé
do lado de fora do lençol e fico olhando de lado quando vou sozinho pela rua.
Sou um medroso assumido. Foi por isso que abri com certo receio o “Chá de
sumiço e outros poemas assombrados”, novo livro - supostamente infantil - de
André Ricardo, que saiu agora pela Autêntica de Belo Horizonte.
O livro fala de cemitério, coveiro, Frankenstein, morto-vivo,
Bicho-Papão, múmias e outros espectros menos cotados. André enrola a gente com
uma poesia bem elaborada, umas palavras bem escolhidas, transformando em
brincadeira os nossos medos de criança. Às vezes avança em um terreno onde a
criação poética trisca as farpas do trocadilho. Mas o poeta vence e a poesia é
maior que o simples jogo das palavras. O poema do Bicho-Papão é o que mais se
arrisca nessa fronteira.
As ilustrações de Luyse Costa traduzem bem o espírito dos poemas. O traço
finge uma simplicidade que revela, mais que esconde, a intenção geral do livro
que, no meu fraco entender, é tocar com leveza nos nossos fantasmas recônditos,
despertando-os, mas deixando-os meio sonolentos, sem muita vontade de assustar.
Este é o dever de todo bom poeta: usar o artifício da palavra para tocar
em certos territórios estrangeiros do leitor e ali despertar sentimentos há
muito adormecidos e alguns jamais suspeitados. O poeta é uma espécie de
“coiote” mexicano que transporta os afetos migrantes pela fronteira
desertificada com a promessa (nem sempre cumprida) de fazê-los emergir no
território da palavra, onde por fim alcançarão a cidadania simbólica.
André é um “coiote” competente. Seu poema “Almas” é o que melhor
estabelece esta ponte de palavras entre os medos infantis e sua elaboração pelo
humor, permitindo-nos revisitar nossos fantasmas com a íntima distância que o
trabalho simbólico permite.
Será o “Chá de sumiço...” um livro infantil? Certamente que sim. Mas no
sentido em de que se dirige ao “infantil”, o território do “infans”, do sem
fala, que permanece como relíquia em cada um de nós.