Primeira canção
Sei que estás aqui.
Um resto de gozo
ainda me ondula as carnes,
mas sei que já estás aqui.
Ainda tensa pelo esforço recente,
minha mão já afaga
o lugar onde te guardo.
Mal começo a te fazer
e já meus braços querem
se fechar em ninho.
E minha voz ainda arfante
já ensaia as primeiras notas
de uma canção
para te ninar.
Ofício do tempo
Entrega teu corpo ao tempo
que o tempo faz seu milagre
Entrega ao tear do tempo
As fibras da tua carne
Espera
Somente espera
que o tempo sabe o ofício
de tecer com tuas fibras
o pano rubro da vida.
Berço
Ainda não sabes,
mas já tens um nome.
E os nomes de todas as coisas
já esperam para brincar contigo.
Teu verdadeiro berço é minha voz.
E com ela te mostrarei o mundo.
Já estão prontas em mim as palavras
Que transformarão teu corpo
Em carne viva.
Canção do ventre
Dorme
que dentro de mim
é sempre calmo.
Meu clima é bom.
Sou um canto de esperar.
Dorme
que dentro de mim
é sempre berço.
E canta uma eterna cantiga de ninar.
Dorme
que dentro de mim
é sempre casa.
Um cômodo só,
muito espaço pra brincar.
Dorme
que em mim
será sempre madrugada.
Dorme
que dentro de mim
é sempre mar.
Dorme
que dentro de mim
é sempre tempo
da vida se refazer
e depois se acordar.
De pé
Em poucos meses repetes
O que custou séculos à humanidade.
Levantas do chão
as patas dianteiras
e entre júbilo e quedas
ensaias teus primeiros passos.
Agora
tens as mãos livres
para o amor
o trabalho
a guerra.
Embalo do trem noturno
Longe, longe,
muito longe.
Impossível ver o corpo do teu filho
morto
caído
os olhos abertos ao trem
que não o levará.
Tarde, tarde,
muito tarde.
Impossível ter o corpo do teu filho
morto
frio
a carne ressecada
ávida da terra que o amornará.
Longe e tarde jaz
o corpo do teu filho,
prematuro nada.
Resta apenas o corpo do teu filho
ontem
pequenino
que embalas hoje
noite adentro
tempo adentro
até não restar mais
dor, canto, noite ou tempo.
Até que durmas tu,
mãe do sofrimento.