28 maio 2014

Atestados parciais





A certa altura da vida, os resultados dos exames médicos se transformam em atestados parciais de morte.  Cada folha de papel entregue pelo laboratório se traduz num recado da morte que avança sorrateiramente pelo território do meu corpo.

Mas esta não é a única forma da morte se instalar em nossa vida. Não estou certo se foi o Cony, mas certamente foi um dos mineiros que, falando sobre o envelhecimento, disse que o passar do tempo vai tornando o mundo cada vez mais despovoado. Chega um momento em que você não tem mais pra quem telefonar. É a forma de a morte nos atacar, sorrateiramente, também pelo lado de fora.    


Na introdução aos seus “Doze contos peregrinos”, Gabriel Garcia Marques conta um sonho sobre a sua morte que deu origem ao livro: ele caminhava alegremente entre os seus melhores amigos no cortejo do seu próprio funeral.  Chegando ao cemitério, os amigos se despedem e começam a voltar. Quando ele tenta acompanhá-los, um deles diz que não, ele é o único que não pode voltar. O escritor então conclui que morrer é não poder mais estar com os amigos.

Por mais que tentemos denegar a presença da morte em nosso corpo, não podemos ficar alheios aos seus estragos no mundo dos amigos. E não estou me referindo apenas ao vazio deixado pelo desaparecimento físico de alguns deles. Muito mais numerosos são aqueles que se afastam de nós ou nos afastamos deles, muitas vezes sem saber muito bem o motivo da separação.

Quando me vejo pensando na morte, sinto-me pouco preocupado com o meu próprio destino numa improvável sobrevivência imaterial. O que mais me preocupa é o sofrimento involuntário que irei causar aos amigos sobreviventes. E quando falo amigos, estou me referindo aos mais variados graus de amizade, desde os familiares mais íntimos até aquele leitor, distante mas afetuoso, que sempre comenta meus textos pela internet.


Por favor, não me tomem por mórbido. Apenas estou me habituando aos poucos aos recados da morte. Aprendendo a conviver com ela. E tudo que mais desejo é que seja uma longa, longuíssima, convivência.    

03 maio 2014

A arte do cuidado




 Você pode estudar muito e se tornar um bom médico, um ótimo psicólogo, um excelente enfermeiro. Mas não tem livro que ensine você a cuidar dos outros.
         O cuidado é uma arte cada vez mais rara entre as pessoas. E quase inexistente entre os profissionais de saúde. Uns alegam falta de tempo, outros se bastam com sua competência técnica. Outros ainda se deleitam sadicamente com o poder que exercem sobre seus pacientes, aumentando deliberadamente o sofrimento alheio.
         Considero-me privilegiado quando encontro quem cuide de mim para além de meus achaques físicos. Quando sinto que a escuta ultrapassa a fronteira da minha anatomia com suas mazelas e se abre para toda a dimensão da minha existência.
         Estou tocando neste assunto porque hoje é o aniversário de uma dessas artistas do cuidado. Uma que, antes de bisbilhotar sobre os estragos do tempo e do mal uso nesta frágil carcaça, abre-me um sorriso que me assegura que cuidará de mim, seja lá o que eu tenha feito de ruim com o meu fígado.

         Alguns a chamam de Doutora Fátima. Eu me reservo o direito de chamá-la, carinhosamente, de Madame Duques. De um modo ou de outro, é a melhor pessoa que me ocorre chamar quando estou precisando de cuidado.